Precisamos falar sobre sangue

"A visão é sempre uma questão de poder de ver - e talvez da violência implícita em nossas práticas de visualização. Com o sangue de quem foram feitos os meus olhos?"

"I am rooted, but I flow" Virgínia Wolf. Imagem Catherine G. McElroy. Occupy Menstruation.



Enquanto escrevo, sangro. Não o sangue romântico dos escritores e suas musas pálidas, não um sangue metafórico que representa algo mais elevado. Sangro sangue. Sangue real, visível, palpável, que escorre das paredes do meu útero, desce pelo canal da minha vagina e deixa meu corpo entrando em um mundo no qual não é bem vindo. Não é o sangue da guerra, da valentia e da violência dos homens, esse sangue tão valorizado dos ferimentos de batalha. É sangue de humanidade e fragilidade, de inescapável ligação com a matéria orgânica.

Um dia antes de sangrar, sonhei que matava um coelho, um coelho preto, com uma faca pequena e muito afiada. Em um momento de absoluta animalidade, com andar inaudível, de felina, acertei-o com uma facada certeira no pescoço. Não me incomodei em matá-lo; estava em minha vestimenta animal. Mas vê-lo morto e ter que carregá-lo, enquanto suas vértebras se quebravam em minhas mãos ensanguentadas foi uma experiência onírica das mais brutais. Embora superficialmente possa parecer um sonho de caça, violência e valentia, foi muito mais um sonho sobre a minha fragilidade e a do coelho, sobre a carne tênue que eu cortei e o sangue e a vida que ele derramou. Foi um sonho sobre vértebras que se despedaçam em um ser fragilizado pela morte.

Lidar com sangue é lidar com vida e a possibilidade de sua perda. É lidar com a morte, o medo e a impotência frente a um mundo sobre o qual temos pouco controle. Expiramos em um segundo, há milhões de formas de morrer. E temos a desesperada necessidade de nos manter afastados desse aspecto brutal, dessa indiferença cósmica que faz questão de nos mostrar a cada segundo que, por mais que amemos, por mais profundas que sejam nossas experiências, por mais conhecimento que possamos obter do mundo, nada nos salva, nada nos dá garantias.

Desde o momento em que decidi escrever sobre a menstruação, sabia que teria que fazê-lo sangrando. É nesse momento de fragilidade que está um dos períodos mais férteis das mulheres. Não a fertilidade exterior, ligada à ovulação e à capacidade de gerar um vida, de povoar o mundo. É de uma fertilidade mais sutil e muito mais íntima. Uma fertilidade que não deve nada ao mundo. Que não demanda produtividade. Sem função aparente. Não é à toa que o maior proponente da supressão menstrual seja o médico brasileiro autor do livro Menstruação - a sangria inútil, sobre o qual pretendo falar em mais detalhes nos próximos textos.

Defendo com vigor o abandono das noções de utilidade e produtividade vendidas atualmente, especialmente para as mulheres. Elas garantem a destruição dos aspectos mais sutis da psicologia feminina em prol de sua inserção em um mundo hostil à tudo que se insere em seu corpo. Utilidade é um conceito bastante perigoso, geralmente apropriado por adeptos de visões extremamente limitadas do mundo, nesse caso homens, que se aventuram a falar do corpo de mulheres. Com pouca criatividade e pouca disposição à pensar de forma divergente, esses homens - porque a ciência e a história foram até recentemente feitas exclusivamente por eles- não tiveram a capacidade de atribuir qualquer sentido positivo às estruturas e eventos exclusivos do corpo feminino: clitóris, seios, menstruação, contracepção, gestação, parto, amamentação e menopausa. A violência obstétrica, as taxas recorde de cesáreas sem indicação médica, os procedimentos ritualísticos e não apoiados por evidências feitos durante o parto (episiotomia, tricotomia, posição deitada no parto etc), o incentivo à supressão menstrual, a indicação indiscriminada dos contraceptivos hormonais, a falta de diálogo entre médicos e pacientes sobre seus tratamentos e exames de saúde, o terrorismo em torno do câncer de mama e outros cânceres ginecológicos, os tabus que cercam a amamentação e a menopausa, tudo isso ilustra um cenário de completo desconhecimento e debate esclarecido (e corajoso) sobre o corpo feminino.

A história da medicina é das mais assustadoras, especialmente nos episódios ligados ao estudo anatômico do corpo feminino. Até pouco tempo não se sabia quase nada sobre o clitóris. Ainda hoje se disseminam mitos sobre o ponto G e o orgasmo feminino. A facilidade com que os processos do corpo feminino são descartados como inúteis demonstra a arrogância daqueles que se propõe a estudá-lo. Mais perigosa é a ideologia que sustenta a visão de que o corpo feminino é falho e que os processos e estruturas que lhes são particulares podem ser facilmente substituídos ou suprimidos sem trazer risco à saúde e à integridade psíquica das mulheres. O parto ilustra muito bem isso. A crença de que trazer um bebê ao mundo por meio de uma cirurgia é mais seguro e mais indicado, tanto para mãe quanto para a criança, só se sustenta porque tanto os médicos quanto as mulheres foram socializadas em uma cultura que considera descartáveis e facilmente substituíveis os fenômenos que se inscrevem nos corpos femininos. A menopausa é um ótimo contraexemplo, uma vez que as terapias de reposição hormonal (agora consideradas perigosas para a saúde) buscavam justamente negar e reverter os efeitos das mudanças hormonais características dessa fase. Vivemos a negação da menstruação e do parto ao mesmo tempo em que não aceitamos o fim da fertilidade. Somos extremamente infantis e avessos à mudanças. Como mulheres, somos penalizadas pela perspectiva parcial e limitada por meio da qual o mundo foi interpretado nos últimos milhares de anos.

O corpo é uma entidade que foi escravizada pelos desejos predatórios e vorazes de um mundo que só se sustenta com crescimento constante, produtividade ininterrupta e lucros crescentes, cada vez mais concentrados. A cisão natureza/cultura, mente/corpo, sujeito/objeto sustenta esse movimento ao negar os limites do corpo, do mundo natural e dos sujeitos em atender as demandas de nosso modo de vida. Assim, nos sentimos limitados quando temos que ceder aos desejos e necessidades do corpo: quando precisamos dormir, comer alimentos mais nutritivos, quando ficamos doentes, quando menstruamos, quando engravidamos. Não porque esse processos em si sejam limitantes, mas porque vivemos em um mundo hostil ao tempo, hostil ao corpo biológico e hostil à natureza.

Nessa guerra constante entre os desejos de uma mente colonizada por imagens de sucesso, movimento, atividade, vigor, nos ressentimos de nossos corpos que não permitem que avancemos sem levar-lhes em consideração. Construiu-se a ideia do corpo como simples aparato que carrega a mente, o que se vê claramente nas escolas (e nas empresas), onde os alunos (e funcionários) são forçados a passar grande parte dos seus dias sentados, em total negligência para com seus corpos. Não é à toa que as aulas de dança são atividades extracurriculares na maioria das escolas. Mas não se pode negligenciar o corpo por muito tempo, e as campanhas opressivas de saúde garantem que se saiba disso. Repletos de medo de se ver punidos por esses corpos despóticos e vingativos, todos atentam para as recomendações médico-nutricionais sobre como ter uma vida saudável, evitando que seus corpos se rebelem em espasmos de doenças e cânceres. A completa alienação em relação ao corpo soma-se ao medo de seus descontroles.

A tendência atual à construção de corpos perfeitos e magros por meio de cirurgias estéticas, dietas restritivas e as mais diversas práticas corporais busca construir corpos que realizem desejos de sucesso, de amor, de status. Cria-se um corpo escravizado pelos desejos de uma mente que se vê como onipotente. Mas, ao mesmo tempo, esse é um corpo que protege, pois ergue muralhas, afasta; é um "corpo invólucro"¹, "um corpo como forma de limite rígido entre o sujeito e o mundo". Não é, contudo, um corpo que deseja, um corpo que vive. Um corpo vivente, na concepção de Nelson Coelho Júnior, "é um corpo no mundo, em relação. Um corpo que escapa, assim, do corpo dos limites, do corpo imaginado pelo sujeito moderno. [...] Com o desejo de construir um corpo eterno, construímos um corpo morto, sem desejo, vampirizado em sua potência vital. [...] Corpos mortos não sangram.

Partilho da visão de Merleau-Ponty, de que" [...] não estou diante de meu corpo, estou dentro de meu corpo, ou mais certamente sou meu corpo." Enquanto sou corpo, viver fragmentada, viver como mente e  alienada do corpo é estar fraturada. Menstruar é parte de mim. Eu sou meu corpo. Meu corpo sangra.


Se a visão é um questão do poder de ver, precisamos poder ver mais. Poder ver de perspectivas distintas, poder ver a nós mesmas com olhos que se permitem sangrar. Não deixemos que as nossas próprias visões sobre os nossos corpos e as nossas identidades nos sejam impostos por olhares exógenos. Devemos aprender a olhar, com liberdade, com criatividade. Para nos livrarmos das violências implícitas em nossas práticas de visualização, precisamos arrancar nossos próprios olhos e crescer uma nova visão.
 


Continua...

¹ "Corpo construído, corpo vivido e corpo desejante - considerações contemporâneas sobre a noção de corpo na psicanálise e na filosofia de Merleau-Ponty", de Nelson Coelho Júnior.

Dourando a pílula: o gosto amargo dos contraceptivos hormonais

Este é o quarto texto da série Tudo o que descobri sobre a pílula e por que decidi não tomá-la
Versão em inglês

Ao buscar informações sobre a pílula na internet, o blog de Holly Grigg-Spall, Sweetening the pill, foi um dos poucos lugares que encontrei onde o assunto era debatido de forma crítica e corajosa. Seu livro, Sweetening the Pill: or How We Got Hooked On Hormonal Birth Control [Dourando a pílula: ou como ficamos viciadas em contraceptivos hormonais - minha tradução], foi recentemente publicado. Eu tive o prazer de lê-lo e acredito ser uma leitura essencial para todas as mulheres que buscam se empoderar e tomar decisões informadas sobre sua saúde e contracepção. Depois de ler seu livro, perguntei a Holly se poderia entrevistá-la e ela gentilmente aceitou.


P: Por que as histórias de tantas mulheres, seus sentimentos negativos e reações à pílula, e os problemas de saúde que ela gera, são tão comumente descartados como queixas isoladas?

R: Ao longo da história, foi dito às mulheres que seus problemas de saúde são "coisas de suas cabeças". Isso costumava ser chamado de histeria, agora é chamado de "o poder da sugestão". As mulheres são tratadas como se fossem histérica e como se elas estimulassem a histeria umas nas outras.Além disso, as mulheres frequentemente se queixam sobre os efeitos colaterais da pílula de forma isolada. No consultório de um médico ou em uma clínica de planejamento familiar, por exemplo. As mulheres não estão reclamando sobre os efeitos colaterais como um coletivo. Na verdade, as mulheres parecem ser muito mais propensas a se culpar, a culpar seus próprios corpos por não reagir da maneira correta ao medicamento, ou por não ser complacente com o medicamento, do que são propensas a culpar o próprio medicamento ou aquele que as encorajou a tomá-lo. Por isso, elas muitas vezes não percebem sua experiência de efeitos colaterais como uma experiência coletiva de muitas mulheres, embora, certamente, o seja.Vivemos em tempos muito conservadores. As pessoas têm dificuldade em questionar instituições como a indústria médica ou corporações como as empresas farmacêuticas. O neoliberalismo do nosso tempo exige que vejamos a nós mesmos como agentes livres, que se movem pelo mundo sem ser afetados pelas pressões sociais e individualmente responsáveis por cada acontecimento em nossas vidas. O feminismo dominante atualmente dita que nos fixamos na Escolha. Portanto, se você faz uma escolha que acaba por ser ruim para você e impactar negativamente a sua vida, esse é um problema só seu.Em muitas outras áreas aceitamos as experiências dos indivíduos como válidas na maneira como eles explicam essas experiências. Por exemplo, se uma mulher trans diz que ela é uma mulher, nós aceitamos essa experiência como válida e a honramos como válida. Se alguém diz que é intolerante ao glúten e que o glúten o deixa doente, nós aceitamos isso como válido e nos reorganizamos para admitir esta experiência. No entanto, estamos vendo que quando as mulheres detalham suas experiências com contraceptivos hormonais, elas são dispensadas ou silenciadas. Os contraceptivos hormonais estão tão atrelados à nossa ideologia que até mesmo a honestidade é vista como uma ameaça ao status quo. 

P: Por que, como você diz no livro, é tão difícil criticar a pílula hoje em dia?

R: A pílula é vista como sinônimo da libertação das mulheres e do progresso da mulher na sociedade ao longo das últimas décadas. Quando discutimos métodos contraceptivos, muitas vezes, na verdade, significa apenas "a pílula". Tornou-se uma panaceia para qualquer doença que afeta as mulheres. Chegamos a um ponto em que o estado natural da mulher é considerado inerentemente doente (isto não nega o fato que algumas mulheres ficam doente por conta de sua biologia, mas não somos TODAS doentes porque somos mulheres, o que eu acredito que é a mensagem) .A crítica à pílula tem sido cooptada por grupos, como a direita religiosa, que são, muitas vezes, anti-aborto, anti-sexo antes do casamento e anti-contracepção como um todo. O movimento das mulheres tem permitido que essa conversa seja dominada. Isso significa que quando nós criticamos a pílula, somos vistas como se estivéssemos fornecendo munição para o "outro lado ". Nos EUA, a contracepção está sendo ameaçada por certas facções que aparentemente desejam tornar mais difícil para as mulheres obter conhecimento sobre e acesso à contracepção. Isso fez com que a esquerda liberal feminista ficasse ainda mais zelosa em seu entusiasmo pelos contraceptivos hormonais e menos aberta à discussões honestas sobre questões de segurança - mesmo quando essas questões são extremamente sérias, por exemplo, a situação com Yaz/Yasmin e a formação de coágulos sanguíneos.E não devemos esquecer que a contracepção hormonal é uma indústria de bilhões de dólares na qual as mulheres são pacientes que compram medicamentos por muitos e muitos anos de suas vidas. Nós não somos nada se não uma sociedade movida pelo corporativismo e isso desempenha um importante papel na maneira como pensamos sobre a pílula. A capacidade de penetração da indústria farmacêutica dentro da indústria médica e sua influência sobre os estudantes de medicina, médicos e as próprias mulheres não deve ser subestimada.

 P: Em sua pesquisa e durante sua própria experiência com a pílula, quais efeitos colaterais você descobriu que normalmente não são mencionados no debate convencional e quais você acha que mais a afetaram pessoalmente? 

R: Eu acho que o impacto psicológico e emocional da pílula nas mulheres raramente é discutido com alguma seriedade. Existe muito pouca pesquisa contínua envolvendo grandes grupos de mulheres, seguidas por um longo período de tempo. Há muito pouca atenção às mulheres que relatam estas questões. Não é apenas a depressão que precisa ser discutida, mas também a ansiedade e a anedonia (incapacidade de desfrutar de atividades geralmente apreciadas). O impacto pode se manifestar de várias maneiras, não necessariamente apenas em um quadro clínico de depressão, e essas formas podem ser muito prejudiciais para a qualidade de vida de uma mulher. Foram certamente esses problemas que me afetaram pessoalmente - ansiedade, ataques de pânico, anedonia, raiva. Além disso, o impacto negativo sobre a experiência sexual das mulheres  não é discutido o suficiente. Não só a libido reduzida como resultado da pílula, mas a falta de lubrificação, reduzida intensidade de orgasmo, dor durante o ato sexual e a probabilidade aumentada de infecções. 

P: Nas discussões do dia a dia podemos ver que a contracepção tem sido, de alguma forma, igualada à pílula e outros contraceptivos hormonais. O que você acha que contribuiu para isso?

R: O capitalismo. A contracepção hormonal gera muito dinheiro para algumas pessoas e se a marca "a pílula " pode se tornar sinônimo de contracepção como um todo, essas pessoas fizeram bem o seu trabalho. A contracepção hormonal nos tem sido empurrada como a ÚNICA opção, na verdade como a própria representante da Escolha. Além disso, a indústria médica, sob o domínio da indústria farmacêutica, apresenta os contraceptivos hormonais como a melhor opção para as mulheres - seja para a contracepção ou para questões relacionadas ao ciclo menstrual. A camisinha é vista como útil apenas para a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, não como método contraceptivo. Todas as outras opções são vistos como ineficazes, inconvenientes, intrusivas ou arcaicas. 

P: Muitas pessoas são cuidadosas ao tomar medicamentos e ficam alertas para seus efeitos colaterais, mas quando se trata da pílula, não a consideram como uma possível causa de problemas de saúde em mulheres que a estão tomando ou que já a tomaram. Como chegamos a não pensar na pílula como uma droga?

R: Nós a chamamos de "a pílula", como se fosse algo inócuo e inofensivo. Nós não pensamos nela como uma droga poderosa, ou como um produto médico. Por todas as razões mencionadas anteriormente, os contraceptivos hormonais têm dominado nossa conversa sobre contracepção. Tornou-se parte da vida moderna para as mulheres. Essencialmente, nossa cultura vê os corpos das mulheres como inerentemente doentes e defeituosos. A pílula corrige os órgãos reprodutivos problemáticos até que eles sejam necessários para o ato socialmente útil de proporcionar uma gravidez. Vemos nossos ciclos antes da gravidez como um incômodo, a causa da doença e da dor, e eles são usados ​​contra nós como indicação de nossa inferioridade em relação aos homens. A pílula é entendida como algo que nos faz melhores. Melhores mulheres. É discutida quase como uma vacina contra o câncer, como a razão da igualdade conseguida pelas mulheres na sociedade, como a razão que as faz, hoje, trabalhar ao lado dos homens nas mais diferentes profissões, até como a razão pela qual as mulheres são felizes. Foi dado à pílula grande parte do crédito pelas conquistas das mulheres ao longo da história. A pílula foi a primeira droga de estilo de vida e é uma porta de entrada que faz com que as mulheres vejam as intervenções médicas não como uma opção, mas como uma necessidade em todos os estágios- menstruação, fertilidade, gravidez, parto, menopausa. 

P: Visto que, como você afirma, "a nossa relação com a pílula é inseparável da nossa relação com a menstruação", o que você acredita estar por trás dessa tendência atual que incentiva as mulheres a suprimir a menstruação e como isso está ligada à pílula?
 
R: A nossa relação com a menstruação está indissociavelmente ligada à nossa relação com a pílula. A pílula nos livra da menstruação e a substitui por sangramentos de escape. A pílula é prescrita para mulheres jovens para "tratar" os ciclos menstruais difíceis e "regular" os seus ciclos. Nossa sociedade perpetua um tabu menstrual que liga a menstruação à vergonha e, portanto, livrar-se dela é visto como algo positivo. Somos informados de que não há razão médica para menstruar, o que não é verdade. Antes da proliferação dos contraceptivos hormonais a menstruação era vista como o quinto sinal vital de uma boa saúde.Vemos a menstruação como inconveniente, porque a nossa sociedade a torna inconveniente. Não é possível menstruar na praia, de férias. Não é possível tirar um tempo se você tem cólicas. Devemos estar ligadas e disponíveis, em todos os sentidos, em todos os momentos. Controlar a menstruação é também uma extensão do controle de outros aspectos do corpo feminino - sejam as flutuações de peso, ou os pelos das pernas e das axilas.Grande parte das justificativas para suprimir a menstruação com o uso de medicamentos remonta ao trabalho do Dr. Coutinho [médico brasileiro] e ele estava intimamente envolvido com o desenvolvimento da injeção e do implante - a contracepção hormonal que agora gera um monte de dinheiro. Parece que acreditamos que a ciência existe separadamente da nossa ideologia. Isso não é verdade, a ciência muitas vezes se propõe a provar o que é necessário provar. 

P: Por que as reações à pílula masculina e feminina são tão diferentes, e por que a pílula masculina não foi tão pesquisada e promovida quanto a pílula feminina?
 
R: Acredita-se que a pílula feminina está "tratando" um problema - a fertilidade e uma possível gravidez indesejada. A gravidez é, portanto, a doença e a pílula é o remédio ou cura. Já a pílula masculina acredita-se que seria uma droga que não está tratando diretamente um problema. Portanto, os efeitos colaterais não serão tolerados, por parte da indústria médica, ou pelos homens - a droga não é necessária e por isso um impacto negativo é levado em consideração com mais seriedade. Os homens não engravidam. Não se considera que os homens também sofram as consequências de uma gravidez indesejada - consequências econômicas, sociais, de saúde também. Eles também podem sofrer consequências se sua parceira usa o contraceptivos hormonais e sofre efeitos colaterais.Esse debate mostra como nós, como uma sociedade, sentimos que a prevenção da gravidez é responsabilidade da mulher e que os homens não têm qualquer ligação intrínseca com a ocorrência de uma gravidez além do fornecimento de esperma. Há muito misoginia entranhada no sistema médico. É uma linha de pensamento presente em todas as outras áreas da nossa sociedade - como vemos homens/pais em relação às mulheres/mães. É por isso que vemos os homens que cuidam de seus próprios filhos como  "babás" e as mulheres que cuidam de seus filhos como desempenhando seu papel correto e natural.

P: No livro, você sugere um interessante paralelo entre a aceitação da cesariana e da pílula pelas mulheres. Você poderia falar sobre isso brevemente?

R: Como eu disse antes, a pílula é uma droga que funciona como porta de entrada, que faz com que as mulheres considerem mais aceitáveis as constantes intervenções médicas às quais são submetidas ao longo dos diferentes estágios de suas vidas, incluindo a gravidez e o parto. Temos uma abordagem padronizada à contracepção, à gravidez e ao nascimento, porque é o método por meio do qual se faz mais dinheiro ou se economiza mais dinheiro de formas que beneficiam o sistema.Tratar o nascimento como um procedimento cirúrgico nem sempre é saudável para a mulher ou o bebê. Tratar TODOS os nascimentos como procedimentos cirúrgicos certamente não é do interesse de todas as mulheres. Da mesma forma, tratar a fertilidade como uma doença e suprimir o ciclo menstrual com drogas poderosas não é do melhor interesse de muitas mulheres. Sim, às vezes as drogas e, por vezes, a cirurgia são necessárias, mas não devem ser vistas como um padrão de atendimento para qualquer situação.

P: Hoje em dia, existem empresas farmacêuticas que tentam desenvolver outra droga para tratar a falta de desejo sexual das mulheres. Qual visão de sexualidade feminina está implícita neste discurso que dá apoio ideológico para o uso generalizado de contraceptivos hormonais? 

R: Eu acredito que é uma visão que sugere que a quantidade é mais importante do que a qualidade. Enquanto as mulheres estão tendo relações sexuais com frequência, enquanto os homens também estão, então não importa se o sexo é realmente agradável. A ideia é fornecer um medicamento que faz com que as mulheres "queiram" sexo com mais frequência, com a compreensão de que mais sexo será equivalente a melhor sexo. Normalmente, os estudos investigam quantas vezes um casal está fazendo sexo e não como eles se sentem sobre o sexo que eles estão fazendo.Hugh Hefner [fundador da Playboy] esperava que a pílula tornasse as mulheres mais disponíveis sexualmente - pois acreditava-se que a principal razão pela qual uma mulher recusaria sexo seria porque ela estava com medo de engravidar -  e mais "sexy". Sexy é exterior e não interior. É sobre as mulheres se comportarem de certa maneira para excitar os homens.Há uma pressão sobre homens e mulheres para querer e fazer sexo o tempo todo. Se você não está fazendo isso, então há algo errado com você que precisa ser corrigido. É claro que por trás do desenvolvimento desta droga está o dinheiro, e muito dinheiro vai ser feito se você considerar como é ampla a definição de disfunção sexual atualmente e quão ampla pode se tornar no futuro. Nós todos poderíamos ser vistos como sexualmente disfuncionais e precisando ser medicados dentro de uma década. 

P: O que significa para você ser feminista? Quais são as batalhas que se aproximam e quais são seus planos para o futuro? 

R: O feminismo tem de deixar de ser um servo do capitalismo. Precisamos parar de ver o sucesso das mulheres nos estreitos termos capitalistas de status corporativo e ganho econômico como a totalidade do movimento feminista. Eu não quero mais CEOs ridiculamente bem pagos que também são do sexo feminino. Eu quero que a desigualdade social seja abordada. Eu quero a redistribuição da riqueza que hoje está nas mãos de uns poucos. O feminismo deve ser sobre mudança social e revolução, não sobre expandir escolhas para as mulheres na economia de mercado. Eu sou uma feminista, mas eu também sou um humanista, eu quero melhor qualidade de vida para homens e mulheres, para todos nós, porque o que temos agora não é sustentável e é totalmente desumano. Chegamos a um ponto em que não acreditamos que haja uma alternativa, e que nós apenas temos que aceitar esse destino. O feminismo tradicional atualmente tem sido cooptado por aqueles que preferem manter o status quo em vez de contestá-lo.

The bitter taste of hormonal contraceptives

This is the forth post in a series about the contraceptive pill and the reasons why I have decide to quit hormonal contraceptives. When trying to find honest information about the pill on the internet, Holly Grigg-Spall's blog Sweetening the Pill was one of the few places I could find that was really talking about it in a corageous and critical way. Her book, Sweetening the pill: or How We Got Hooked On Hormonal Birth Control, has recently been published. I had the pleasure of reading it and think it is a must read for women that really want to be informed and empowered to make decisions about their health and contraception. After reading the book, I asked Holly for an interview, which she gladly answered.
Versão em português


Q: Why are the stories of so many women, their negative feelings and reactions to the pill, the health problems that it generates so commonly dismissed as isolated complaints?

A: Throughout history women have been told that their health problems are "all in their heads." It used to be called hysteria, now it's called "the power of suggestion" instead. Women are treated as though they are hysterical and as though they even whip up hysteria in each other. 

Also, women are often making these complaints regarding side effects from the pill in isolation. At a doctor's office or family planning clinic office for example. Women aren't complaining about side effects as a collective. In fact, women seem to be far more likely to blame themselves, to blame their own bodies for not reacting in the right way to the drugs, or for not being compliant to the drugs, than they are likely to blame the drugs themselves or those that encouraged them to take those drugs. Therefore they often don't see their experience of side effects as a collective experience of many women, even though it certainly is that. 

We live in highly conservative times. People find it hard to question institutions like the medical industry or corporations like pharmaceutical companies. The neoliberalism of our time dictates that we see ourselves as free agents moving through the world unfettered by social pressures and individually responsible for every occurrence in our lives. Current mainstream feminism dictates that we fixate on Choice. Therefore if you make a choice and it turns out to be bad for you and negatively impact your life, that's your problem alone. 

In many other areas we accept individual's experiences as valid in the way they explain those experiences. For example, if a transwoman says she's a woman, we accept this experience as valid and honor it as valid. If someone says they are gluten-intolerant and that gluten makes them sick, we accept that as valid and reorganize to admit this experience. However, we are seeing that when women detail their experiences with hormonal birth control they are dismissed or silenced. Hormonal birth control is bound up in our ideology so tight that even honesty is seen as a threat to the status quo. 

Q: Why, as you put it in the book, it is so hard, nowadays, to criticize the pill?  

A: The pill is seen as synonymous with women's liberation and the progress of women in society through the last few decades. When we discuss "birth control" we often actually mean just "the pill." It has become a cure-all for any ailment that impacts women. We have got to a point that women's natural state is thought inherently sick (this is not to deny some women are made sick by their biology, but we are not ALL sick because we are women, which I believe is the message). 

Criticism of the pill has been co-opted by groups, like the religious Right, that are all too often anti-abortion, anti-sex before marriage, and anti-contraception as a whole. The women's movement has allowed this conversation to be dominated. This means when we criticize the pill we are seen as providing ammunition to "the other side" as it were. In the US birth control is understood as under threat by certain factions who seemingly desire to make it difficult for women to obtain knowledge of contraception and access to contraception. This has made the feminist, liberal Left even more zealous in their enthusiasm for hormonal birth control and even less open to honest discussion about safety issues - even when they are gravely serious, for example the situation with Yaz/Yasmin and blood clots. 

And we mustn't forget that hormonal birth control is a billion dollar industry within which women are patients buying drugs for many, many years of their lives. We are nothing if not a corporate-driven society these days and so this plays a huge factor in how we think about the pill. The pervasive reach of the pharmaceutical industry within the medical industry, and its influence on medical students, practicing doctors, and women themselves should not be underestimated. 

Q: In your research and during your own experience trying to quit the pill, what side effects have you discovered that are not usually mentioned in the mainstream debate and which ones do you think most affected you personally?

A: I think the impact of the pill psychologically and emotionally for women is rarely discussed with any seriousness. There is far too little solid research involving large groups of women followed over a long period of time. There is far too little attention paid to women who report these issues. It's not just depression that needs to be discussed, but also anxiety and anhedonia (the inability to enjoy activities usually enjoyed). The impact can show itself in many ways, not necessarily just a clinical state of depression, and those ways can be very damaging to a woman's quality of life. It was certainly these problems that affected me personally - anxiety, panic attacks, anhedonia, rage. Also perhaps the negative impact on women's experience of sex is not discussed enough. Not only lowered libido as a result of the pill, but lack of lubrication, lowered intensity of orgasm, pain during sex, and the heightened likelihood of infection. 

Q: In day to day discussions we can see that contraception has, somehow, been equated to the pill and other forms of hormonal birth control. What do you believe has contributed to that?

A: Capitalism. Hormonal birth control makes a few people a lot of money and if the brand "the Pill" can become synonymous with birth control as a whole they've done their jobs well. Hormonal birth control has been pushed as the ONLY choice, in fact representative of Choice itself. Also the medical industry, under the thumb of the pharmaceutical industry presents hormonal birth control as the best option for women - whether that's for contraception or cycle issues. Condoms are seen as only useful for prevention of transmission of STIs, not as contraception. All other options are viewed as ineffective, messy, obtrusive, or archaic. 

Q: We are normally caution about taking prescription drugs and wary of their side effects, but when it comes to the pill, it is never considered as a possible cause of health problems in women that are taking it or have taken it. How have we come not to think of the pill as a drug?

A: We call it "the Pill" as though it were innocuous and harmless. We don't think of it as a powerful drug or as a medical product. For all the reasons mentioned before, hormonal birth control has dominated our contraception conversation. It has become part of modern life for women. Essentially we see women's bodies, as a culture, to be inherently sick and faulty. The pill fixes the troublesome reproductive organs until they are needed for the socially useful act of providing a pregnancy. We see our cycles prior to pregnancy as a nuisance, the cause of sickness and pain, and they are used against us as indication of our inferiority to men. The pill is understood to make us BETTER. Better women. It is discussed almost as a cancer-vaccine, as the reason for women gaining equality in society, as the reason for them working alongside men in careers, as the reason they are happy even. It has been given a whole lot of credit for women's achievements through history. The pill was the first lifestyle drug and it is a gateway drug that opens women up to seeing medical intervention as not an option but a necessity at every point - menstruation, fertility, pregnancy, birth, menopause. 

Q: Since, as you stated, “our relationship to the pill is inseparable from our relationship to menstruation”, what do you believe is behind this current trend that encourages women to suppress menstruation and how is it connected to the pill?

A: Our relationship to menstruation is inextricably linked to our relationship to the pill. The pill gets rid of periods and replaces them with withdrawal bleeds. Young women are prescribed the pill to "treat" difficult menstrual cycles and "regulate" their periods. Our society perpetuates a menstrual taboo that links menstruation to shame and therefore getting rid of periods is seen as a positive. We are told there's no medical reason to have a period, which is untrue. Prior to the proliferation of hormonal birth control menstruation was seen as the fifth vital sign of good health. 

We see menstruation as inconvenient because our society makes it inconvenient. It is not possible to have your period at the beach on vacation. It is not possible to take time out if you have cramps. We must be on, and available, in all ways, at all times. Controlling menstruation is also an extension of controlling other aspects of the female body - be that weight fluctuations, or hair on legs and armpits. 

Much of the justifications for skipping periods with drugs goes back to the work of Dr Coutinho and he had ties to the development of the shot and the implant - hormonal birth control that now makes a lot of money. We seem to feel science exists separately from our ideology. This is not true, science too often sets out to prove what is necessary to prove. 

Q: Why our reactions towards male and female pill are so drastically different, and why hasn’t the male pill been as researched and promoted as the female pill?

A: It is believed that the female pill is "treating" an issue - fertility and possible unwanted pregnancy. Pregnancy is therefore the illness and the pill is the medicine or cure. With the male pill it is believed this would be a drug that is not directly treating an issue. Therefore side effects will not be tolerated, by the medical industry, or by men - the drug is not needed and so a negative impact is viewed as more important a consideration. Men do not get pregnant. It is not considered that men also have consequences from unwanted pregnancies - economic, social, health too. They may also have consequences if their partner uses hormonal birth control and suffers side effects. 

The conversation shows how we as a society feel pregnancy prevention is a woman's responsibility and that men do not have any intrinsic connection to the occurrence of a pregnancy beyond providing sperm. There's much misogyny ingrained in the medical system. It's a line of thought too often carried through in all other areas of our society - how we view men/fathers in relation to women/mothers. It's why we see men taking care of their own children as "babysitting" and women taking care of their children as doing their natural, right role. 

Q: In the book, you suggest an interesting parallel between women’s acceptance of the cesarean and of the pill. Could you talk about it briefly?

A: As I said before, the pill is a gateway drug that opens up women to being more accepting of constant medical intervention through the stages all of their lives, including pregnancy and birth. We have a one-size-fits-all approach to contraception and to pregnancy and birth because it is the method by which the most money is made or saved in ways that benefit the system. 

Treating birth as surgery is not always healthy for the woman or her baby. Treating ALL birth as surgery is certainly not in the best interests of all women. Similarly treating fertility as an illness and suppressing the cycle with powerful drugs is not in many women's best interests. Yes, sometimes drugs and sometimes surgery is needed, but it should not be seen as a standard of care for either situation. 

Q: Nowadays, there are pharmaceutical companies trying to develop another drug that will address women’s lack of sexual desire. What vision of female sexuality is implicit in this discourse that gives ideological backing for the widespread use of hormonal contraceptives?

A: I believe it is a view that suggests quantity is more important than quality. As long as women are having sex frequently, as long as men are too, then it doesn't matter whether the sex is actually enjoyable. The idea is to provide a drug that makes women "want" sex more with the understanding that more sex will equal better sex. Usually studies rest on how many times a couple is having sex not how they feel about the sex that they are having. 

Hugh Hefner hoped that the pill would make women more sexually available - because it was believed that the main reason a woman would refuse sex is because she was fearful of pregnancy - and more "sexy." Sexy is exterior, not interior. It is about women behaving in certain a way to arouse men. 

There is a pressure on both men and women to want and have sex all of the time. If you are not doing this then there is something wrong with you that needs to be fixed. Of course behind the development of this drug is money, and much is to be made if you consider how broad the definition of sexual dysfunction is currently and could become. We could all be seen as sexually dysfunctional and in need of drugs within a decade. 

Q: What does it mean for you to be a feminist? What are the battles that lie ahead, and what are your own plans for the future?

A: Feminism needs to stop being the handmaiden to capitalism. We need to stop seeing success of women in the narrow capitalistic terms of corporate status and economic gain as the be-all end-all of the feminist movement. I don't want more ridiculously high paid CEOs who are also female. I want social inequality addressed. I want the redistribution of wealth out of the hands of the undeserving few. Feminism needs to be about social change and revolution, not expanding choice for women in the free market. I'm a feminist but I'm also a humanist, I want a better way of life for men and women, for us all, because the one we have now is not sustainable and is entirely inhumane. We have got to a point where we don't believe there is an alternative, and that we just have to accept this lot. Mainstream feminism currently compounds that as it has been co-opted by those who prefer to sustain the status quo rather than challenge it.

Entre tragadas e enganações

Terceiro texto da série Tudo o que descobri sobre a pílula e por que decidi não tomá-la.

No indispensável documentário da BBC The century of the self, quatro episódios narram a história da apropriação da teoria de Freud pela publicidade e a política nos Estados Unidos. Começa com a trajetória do sobrinho de Freud, Edward Bernays, que leva as ideias psicanalíticas, em especial a de que as ações dos seres humanos têm motivações inconscientes, para o campo da publicidade. Até aquele momento, a propaganda era baseada, principalmente, nos fatos, nas propriedades e qualidades concretas dos produtos: como a durabilidade e resistência dos eletrodomésticos. O que Bernays fez, com grande sucesso, foi abandonar os fatos, enfatizando os sentimentos inconscientes que um produto poderia suscitar. Embora pouco se fale em Bernays, ele foi o principal responsável pelas mudanças que fazem com que, hoje, o consumo esteja associado à anseios e desejos, em oposição às necessidades.

Curiosamente, seu primeiro triunfo veio durante a década de 1920, ao convencer as mulheres a fumar.
Ao tentar entender porque as mulheres não fumavam, percebeu que elas viam o cigarro como um símbolo fálico, representante do poder masculino e, por isso, sentiam ser impróprio para uma mulher fumar. Bernays contratou, então, um grupo de mulheres para se passar por sufragistas em uma passeata, onde foram orientadas a tragar poderosamente em frente aos repórteres, se refererindo aos cigarros como "tochas da liberdade".  Com essa manobra, Bernays conseguiu transformar o cigarro em um símbolo do movimento feminista e do direitos das mulheres, e desde então, as tragadas de milhões de mulheres vêm trazendo sentimentos de  liberdade e emancipação, para depois culminar em cânceres, derrames e morte. Ao se aproveitar da ânsia das mulheres por autonomia, o cigarro passou a ser um paliativo assassino, em muitos casos a única mudança efetiva nas vidas de muitas donas de casa, que demoraram a ver ganhos reais em termos de oportunidades e conquistas.


Outro golpe publicitário veio com o desenvolvimento das misturas para bolo na década de 1940. Embora tenha sido pensado para facilitar a vida das donas de casa, as mulheres não estavam comprando o produto. Psicanalistas concluíram que as mulheres sentiam que não estavam tendo nenhum trabalho ao fazer o bolo instantâneo, e se sentiam envergonhadas em servir algo tão simples para seus maridos. A resposta era simples: bastava incluir um ovo na mistura. Assim, a prendada cozinheira poderia sentir que contribuiu de alguma forma para a receita. Com essa simples e maquiavélica mudança, as vendas foram alavancadas.

Esses dois exemplos servem para ilustrar o início de um processo que atualmente faz parte do nosso cotidiano. Já naturalizamos os apelos que nos invadem e se apropriam de nossos desejos de felicidade, amor, status e poder. Mas como nada é simples, o oposto benéfico das propagandas de cigarros que se entranham em nossos inconscientes não são as bizarras campanhas terroristas no verso dos maços, com fotos de fetos e pulmões lamacentos. Muito menos as proibições do estado, visando cortar os gastos públicos na área da saúde. 

No filme Sem fôlego (Blue in the face), há uma cena em que Jim Jarmush (diretor independente norte-americano) conversa sobre cigarros com Auggie (Harvey Keitel).
          
 Acho que muita gente começou a fumar porque foi glamourizado nos filmes de Hollywood. Você vê Marlon Brando, vê James Dean fumando um cigarro. Marlene Dietrich.
[...] Agora, você vai para Hollywood...Eles nos viciaram em cigarros. Você sabe, essa imagem de glamour. Você vai lá e não pode mais fumar em nenhum lugar. Se fumar depois de uma refeição, em um restaurante, ele vêm e dizem: fumar é proibido por lei em restaurantes, senhor...Eles que começaram, sabe...  

Na sequência, Lou Reed fala para a câmera, em sua imensurável sabedoria...

Sim, estou fumando cigarros, muitos amigos meus morreram disso. Por outro lado, enquanto eu estou fumando cigarros, eu não estou entornando uma garrafa de uísque em 15 minutos. Assim, vendo desse ponto de vista, é uma escolha saudável.


Essa relativização das escolhas individuais é de extrema importância para as mulheres, especialmente no que toca o uso da pílula. A liberdade não é um conceito absoluto e universal. A liberdade é contextual, contingente, mutante e escorregadia. Comecei esse texto com a história da introdução do cigarro na vida das mulheres porque ela não é muito diferente, em sua essência, da história da introdução da pílula anticoncepcional.

Quando digo que deixar de tomar a pílula foi uma escolha libertadora, falo de uma posição muito específica: a posição de uma mulher que não sofre ameaças de violência conjugal, que vive em uma cidade cosmopolita com acesso a recursos diversos, que conhece métodos contraceptivos seguros, não só em termos de eficiência, mas também em termos de efeitos colaterais a curto e longo prazo. Falo de um lugar de onde me é permitido fazer uma aposta de liberdade, mas tenho plena consciência de que esse não é o contexto de muitas mulheres. Vivemos lutas antigas, contra violências que vão desde o assédio nas ruas e no trabalho, até o estupro e o assassinato. Em cada realidade, uma escolha significa liberdade. Para mulheres em contextos de opressão, com valores religiosos retrógrados ou companheiros abusivos, não há espaço para se pedir o uso da camisinha, ou para colocar o diafragma. Em certas situações, a castração química é um mal menor. Significa a única possibilidade de controle.


Contudo, é preciso ter em mente que a aceitação da pílula pelas mulheres foi uma manobra tão elaborada quanto a que alçou o cigarro à ícone feminista.

Antes do desenvolvimento da pílula, eram inúmeros os métodos contraceptivos disponíveis: desde os menos interessantes, como a abstinência, passando por aleitamento prolongado, esponjas embebidas em diferentes substâncias, plantas, métodos de monitoramento (com e sem instrumentos) das épocas férteis do ciclo,  diafragma, DIU, camisinha etc. Mas todos essas opções existiam em uma atmosfera ainda regida por valores vitorianos, que cercavam de conservadorismo tudo que era relacionado ao sexo. Muitas farmácia não vendiam contraceptivos até o final da década de 1950 e, mesmo assim, tinham a venda restrita aos clientes que eram comprovadamente casados. Com a revolução sexual da década de 1960, os métodos contraceptivos se tornaram mais disponíveis.

A pílula foi aprovada para uso em 1960, causando uma mudança massiva no tipo de contracepção usado, com as mulheres assumindo maior responsabilidade pela contracepção. Ao mesmo tempo, a atitude dos médicos em relação à contracepção mudou drasticamente; antes relutantes em relação à contracepção, ao serem agraciados com o poder de prescrever a pílula, mudam rapidamente de posição.
 
Como com os cigarros, a pílula foi vendida, desde o início, como uma droga segura, que não trazia riscos à saúde. Mas não demorou para que as pílulas com altas dosagens de hormônios, disponíveis até 1975, fossem associadas à formação de coágulos responsáveis por derrames, amputações e mortes. Foi necessário muita pressão de médicos e consumidores para que esses riscos fossem reconhecidos e incluídos na bula.

Desde então, as pílulas de nova geração vêm sendo desenvolvidas, visando diminuir as dosagens de hormônios e os efeitos colaterais. Mas essas "novas" pílulas ainda trazem efeitos consideráveis, muitos deles cumulativos, resultado do desequilíbrio nutricional crônico causado pelo uso prolongado da pílula. E, ao contrário do que se esperaria, estudos têm mostrado que elas, na verdade, aumentam o risco de formação de coágulos, especialmente aquelas que contêm drosperinona, como Yaz e Yasmin, suspeitas de causar a morte de 23 mulheres no Canadá, neste ano.

A história é essencial para nos lembrar das negações, embustes, fraudes, manobras e apropriações que causaram tantas mortes em nome dos lucros de uma minoria; para que não nos esqueçamos que a banalidade do mal, como coloca Hannah Arendt, se vale do aval ou da alienação da grande maioria da população, que, ao se demitir de pensar, consentem às mais imperdoáveis atrocidades.

continua...

  







A castração química e o medo do escuro

 Segundo episódio da série Tudo o que descobri sobre a pílula e porque decidi não tomá-la.


Não vemos as coisas como elas são: as vemos como nós somos.
 Anaïs Nin

A decisão de parar de tomar a pílula não veio assim, de uma grande coragem e uma intuição clara, às quais cedi sem conflitos. Sendo uma mulher moderna, com mentalidade científica e extremamente racional, não conseguiria seguir meus instintos sem algum tipo de apoio teórico, de evidências que embasassem minhas suspeitas. Não naquele momento, pelo menos. Em parte, minha incapacidade emocional de tomar qualquer decisão que não compreendesse racionalmente, me obrigou a mergulhar em um mundo até então inexplorado, do qual eu não era nativa. Para conseguir fazer sentido de tudo isso, me afundei em uma pilha de leituras fascinantes. E o que eu não podia compreender era como todo esse conhecimento esteve escondido de mim por tantos anos. Nunca me falaram disso na escola, nem em casa, nem na faculdade, nem nas revistas femininas, nem na televisão. Hoje me é muito claro porque tudo isso permanece em um terreno ao qual poucos têm acesso. Mas esse é assunto para outro momento...

Inicialmente, ainda focada nas questões de sáude, nos meus exames alterados, busquei compreender os efeitos da pílula sobre o meu corpo; entender exatamente como ela funcionava. Por incrível que pareça, e me envergonho disso (especialmente pelo fato de ser bióloga), percebi que sabia muito pouco sobre os métodos contraceptivos que existem: sua forma de atuação, seus efeitos colaterais a curto e a longo prazo, a história do seu desenvolvimento e, principalmente, o tipo de relacionamento com o corpo que cada método permite ou incentiva.

Sempre tive a mania inconveniente (para os médicos, pelo menos), de abrir todos os meus exames e buscar na internet ou em livros informações sobre os resultados que recebia, as doenças de que suspeitava, os efeitos dos remédios que tomava. Embora os médicos sejam unânimes em condenar esse tipo de comportamento, hoje faço apologia a ele, e à autonomia e poder de decisão dos pacientes em relação a sua própria saúde. E, embora a internet possa ser um campo perigoso e de muita desinformação, acaba por tornar menos hierárquica a relação entre os médicos e os pacientes - é o mesmo que vem acontecendo nas escolas, para grande receio dos professores.

Eu continuava com minha inconveniência durante as consultas, com todas as perguntas possíveis e imagináveis sobre fisiologia e a forma de atuação dos medicamentos; ou com indagações sobre as razões para a prescrição de determinada dieta, vitamina ou procedimento. Por mais que fosse plenamente capaz de compreender os intrincados mecanismos do corpo, as interações de hormônios, as funções de cada órgão, sempre era dispensada com meias explicações e discursos obscuros, como se ninguém fosse capaz de compreender os complicadíssimos diagnósticos a que os brilhantes médicos chegavam depois de passar por décadas de estudos e treinamento. Quem era eu para tentar compreender? Como ousas questionar os desígnios de seu Médico? Aquele que sabe, aquele que vê. Percebi que a síndrome de House (SHO) - doença daquele médico "brilhante" do seriado, que sempre sabe mais do que qualquer paciente, não só sobre as suas doenças, mas sobre as suas mentiras e mais do que isso, sobre o que é melhor para eles - é uma doença perigosa, contagiosa e muito prevalente entre os médicos. (Tenho certeza que acabo de entrar na lista negra dos pronto-socorros de São Paulo; quicá do Brasil).

Descobri o valor da internet livre nesse época. E percebi também que, infelizmente, pode-se viver com pleno acesso à internet sem tirar nenhum proveito dela, ao usá-la de forma tímida, conservadora, buscando as mesmas autoridades, as mesmas mídias; lendo os portais tradicionais, se mantendo submisso às velhas fontes de (des)informação que dominam o rádio, a TV e a imprensa brasileira de forma geral. Mas, por sorte, sabia como fugir disso. Sabia que para achar o que precisava não bastava procurar por "efeitos colaterais da pílula", não bastava ir às fontes de informação oficial, aos sites de órgãos do governo. Tinha que arriscar ouvir as vozes que ninguém mais queria ouvir. As vozes que diziam o que eu queria dizer mas não podia, que falavam sobre o que eu sentia. As vozes que viam o mundo da mesma forma que eu. Por que o discurso dominante, o consenso assassino, é o que há uma verdade sobre as coisas; que as coisas são como elas são. E se há uma forma de acessar a essência dos fenômenos do mundo, essa forma é a Ciência. E todas as verdades que a Ciência descobriu foram bem divulgadas e estão disponíveis, ao acesso de todos.
Em parte, o ensino de Ciências, da forma como é feito hoje, contribui muito para que se aceite as descobertas científicas como dogmas, revelados por cientistas iluminados - geralmente homens do hemisfério Norte.

Nessa busca pelos becos obscuros da internet, descobri dois livros que falam de forma aprofundada sobre os efeitos da pílula e sobre como seria possível regular os hormônios, conseguir contracepção segura, eficiente e prática sem ela. Infelizmente os dois ainda não foram traduzidos para o português, mas pretendo falar sobre os pontos mais importantes deles aqui no blog. Para quem lê em inglês, sugiro dar um espiada nos trechos que estão disponíveis para acesso grátis.

O primeiro livro se chama The pill: are you sure it's for you? (A pílula: tem certeza que é para você?). Nesse livro, descobri a real lista dos efeitos colaterais da pílula, com indicações de diversos estudos científicos e relatos de tantas mulheres que sofreram os efeitos de depressão, perda de libido, mudanças de humor, aumento de peso, osteoporose, enxaquecas, trombose, fadiga crônica, câncer de mama, câncer de colo de útero, infertilidade, deficiências nutricionais e como eu já esperava, alterações nos níveis de colesterol e triglicérides. Mas como? Meu médico só havia me perguntado se eu fumava? A pílula não trazia riscos só para as mulheres fumantes, com mais de 35 anos? Não me haviam perguntado se eu aceitava esses riscos. Afinal, é tudo uma relação entre os riscos e os benefícios, não é? Com as informações que eu tinha agora, os riscos se mostravam cada vez menos aceitáveis e os benefícios bastante questionáveis. 

O segundo livro se chama Balance your hormones, balance your life: achieving optimal health and wellness through Ayurveda, Chinese Medicine, and Western Science (Equilíbre seus hormônios, equilibre sua vida:  alcançando saúde e bem-estar através da Ayurveda, da Medicina Chinesa e da Ciência Ocidental). (PS: Sim, sou adepta de abordagens holísticas, e não só em relação à saúde). Nesse livro as noções de sáude das medicinas orientais são mescladas à ciência moderna de uma forma bastante inovadora. Sugiro que os dois livros sejam lidos em conjunto, para quem se interessar.

Pretendo trazer mais informações desses dois livros em outros momentos, mas por ora deixo as indicações.

Não se enganem. Eu tinha medo do meu corpo, tinha pavor de ser deixada sozinha no mesmo quarto com ele, especialmente na TPM ou naqueles dias de cólica intensa. Tinha medo da acne, tinha medo de quem eu podia ser sem a pílula. A pílula é uma droga de estilo de vida, é a droga que tomei para ser uma mulher responsável, em controle do meu corpo. Eu era a primeira a exaltar a pílula como a responsável pela autonomia das mulheres, como grande conquista do movimento feminista. Tomá-la fazia parte da minha rotina há 9 anos. Tinha começado a tomá-la antes de ter ideia de quem eu era; de como meu corpo funcionava. Quem seria eu, sem a pílula? Não bastava simplesmente deixar de tomá-la, não era só uma decisão prática. Era o começo de uma reinvenção da minha identidade enquanto mulher. Era a mudança de uma lógica de controle autoritário sobre o meu corpo, para uma lógica de comunicação, aceitação e carinho.
Era a superação de uma lógica masculina, de dominação, conquista, força e controle, para uma lógica feminina, de diálogo, diversidade, aceitação, fluxo, interação, cooperação. Essa não era uma simples escolha individual; era uma ação política.


Não conheço nenhuma mulher - virgem, mãe, lésbica, casada, celibatária, tire ela seu sustento como dona de casa, garçonete de festas ou técnica de tomografia cerebral - para quem o próprio corpo não seja um problema fundamental: seus significados encobertos, sua fertilidade, seu desejo, sua assim chamada frigidez, seu discurso sangrento, seus silêncios, suas mudanças e mutilações, suas violações e maturações. Existe hoje, pela primeira vez, a possibilidade de converter nossa fisicidade ao mesmo tempo em conhecimento e poder.
Adrienne Rich - Of woman born: motherhood as experience and institution (Do nascimento da mulher: maternidade como experiência e instituição). Trecho citado no livro A mulher no corpo: uma análise cultural da reprodução, de Emily Martin. Rio de Janeiro: Garamond, 2006. p. 31.


Para mim, é muito claro que os métodos hormonais de contracepção são métodos de castração química, de anulação do ciclo menstrual, de não aceitação de uma fertilidade que passou a ser construída como patológica. E o problema mais grave é que nosso ciclo não está só relacionado com nossa fertilidade, com a função reprodutiva, mas com nossa saúde geral e com a plena potência do corpo feminino para atuar no mundo, com sua libido, com seus desejos.


A questão era se alguma mulher iria tomar uma pílula todo dia para prevenir-se da gravidez. Eles acreditam que ninguém vai fazer isso; não quando nem estão doentes, e elas não estão doentes.
James Balog, Merck Pharmaceuticals (The doctor's case against the pill, Barbara Seaman)


Se a questão era que as mulheres não estavam doentes para tomar uma pílula, bastava reavivar antigos fantasmas da fragilidade constitutiva das mulheres. Bastava patologizar seu ciclo reprodutivo.

[...] "A mulher do século XIX é uma eterna doente", escreve Yvone Knibiehler:
A medicina da Luzes apresenta as etapas da vida feminina como [uma sucessão de] crises temíveis, independentemente de qualquer patologia. Além da gravidez e do parto, a puberdade e a menopausa constituíam também, a partir de então, provocações mais ou menos perigosas; e as menstruações, feridas dos ovários, abalam, diz-se, o equilíbrio nervoso. Todas as estatísticas provam, com efeito, que as mulheres sofreram, no século XIX, de uma morbidez e uma mortalidade superior às dos homens. A opinião pública e numerosos médicos incriminam a 'fraqueza' da 'natureza feminina': causa biológica eterna e universal, que se arriscava a alimentar um fatalismo insuperável. 
Desclocamentos do Feminino, de Maria Rita Kehl. Citação do livro Corpos e corações, de Yvone Knibiehler.

Vivi por muito tempo atormentada pelos fantasmas dessa construção do corpo da mulher como um corpo falho, defeituoso em sua essência. Mas começava a acreditar que não estava doente. Contudo, isso não era suficiente para aniquilar o medo que ainda tinha do meu próprio corpo. Medo que teria que enfrentar. Já havia tentando anteriormente ficar sem a pílula; havia parado por 1 ano por conta própria. Mas o medo me fez recair no vício. O medo de que meu corpo fosse se voltar contra mim em convulsões dolorosas, cistos, cânceres e sangue em profusão. O medo do meu corpo, percebo agora, era o medo da escuridão, da incerteza, da falta de controle; da vida. E era com esse medo que teria que lidar.

Apesar de todos os nossos avanços, somos ainda crianças com medo do escuro. Estamos presos em uma baía rasa, de recifes perigosos e ondas gigantes. Mas somos uma espécie abissal, que precisa da pressão de toneladas de água e a escuridão das profundezas; do lodo e das fissuras cheias de magna quente. No nosso ambiente, no fundo do oceano, somos feios e estranhos, mas temos luz própria. Por isso, me oponho às lâmpadas fluorescentes, aos ambientes iluminados das empresas que alimentam gado intelectual; aos hospitais e seus holofotes, que brilham sobre os corpos das mulheres grávidas antes de cortá-las contra sua vontade; me oponho às luzes do conhecimento científico. Voltar à zona abissal é uma tarefa difícil, cheia de riscos. Não há garantias de que se vá sobreviver. O medo é o sentimento que impera. Não só o medo das ondas gigantescas que quebram nos recifes de corais; mas o medo do alto-mar, do silêncio e do peso da água. Nenhuma espécie brilha sob luzes artificiais; nada é gestado sob a ditadura dos holofotes. Estamos todos cegos pela luz. Somos uma espécie abissal, morrendo lentamente em poças temporárias na superfície.

Resolvi retornar. Atravessei a arrebentação e estou no começo de um mergulho longo e solitário. 

Nesse mergulho em apneia, encontrei cavalos-marinhos que cuidam de seus filhotes, peixes que se organizam em cardumes brilhantes e golfinhos que se chamam pelo nome. Nesse mergulho, vi os inacreditáveis homens-polvo dando prazer a uma mulher. O fundo do mar é estranho e incrível. Tem criaturas que nunca foram descritas. Há mistério e calor. Todos fogem de lá porque não podem acender suas lanternas brilhantes que não aguentam a pressão. Fogem porque esqueceram de seus outros sentidos adormecidos. Fogem porque, quando deixados no escuro, não têm como fugir da própria dor.

 Dream of the Fisherman´s wife (Sonho da mulher do pescador), de Katsushika Hokusai.


 Continua...
 






Tudo o que descobri sobre a pílula - e porque decidi não tomá-la (episódio piloto)

 O ser humano não suporta uma vida sem significado
Carl Gustav Jung

Amigos muito queridos e perspicazes me alertaram para algo que eu mesma não tinha percebido. Comecei esse blog com a intenção de divulgar informações que para mim foram valiosas e me deram outra perspectiva sobre quase todos os aspectos da minha vida. E talvez, na ânsia de divulgar tudo o mais rápido possível, de mostrar onde estou agora, o que defendo, no que acredito, acabei começando pelo fim, que não é exatamente um fim em si, mas um lugar muito diferente de onde estava há alguns anos. Ao fazer isso, acabei por não incluir ninguém no processo que me trouxe a essas conclusões, na trajetória que percorri. Por isso, vou dar alguns passos para trás e começar do começo, ir um pouco mais devagar. Porque ao fazer isso, ao excluir todos desse processo, tudo que digo parece ter o intuito de instituir uma nova verdade, um novo discurso de autoridade. E a intenção genuína dessa iniciativa sempre foi a de mostrar um caminho alternativo, mais um caminho possível dentre tantos outros que podem ser criados.

Por isso, pretendo começar nesse mês de agosto, indo até setembro provavelmente, uma série de textos sobre a pílula e sobre o trajeto que me levou não só a deixar de tomá-la, mas a descobrir uma discussão muito rica e pouco divulgada sobre as questões políticas envolvidas nessa decisão.




Episódio piloto
Quando tento pensar em como tudo começou, lembro-me da situação deplorável em que me encontrava. Recém saída de um mestrado estressante, sem bolsa, tentando sobreviver com freelas e bicos, aos trancos e quase pulando de barrancos, com sérios conflitos familiares, um namoro intenso que acabava de começar e uma vida sem rumo certo. 


Aos poucos, o trabalho foi estabilizando, a vida foi entrando nos eixos, o relacionamento foi firmando. E foi aí, nessa estranha calmaria, nessa vida estável e confortável, que o mal-estar que sempre me acompanhou, que sempre esteve rondando, me engoliu. Como diz a citação daquela pessoa famosa que não lembro o nome e que devo estar citando errado: "É quando tudo vai bem que os reais problemas começam".

Comecei a engordar exponencialmente, sentir falta de ar, labirintite...Fui acometida por uma série de traqueítes, laringites, faringites; por taquicardias, bruxismo, rinites...Tinha pesadelos recorrentes e momentos de depressão, ataques de pânico e delírios de fim de mundo.

Ia à médicos muito bons, que passavam horas em consulta me explicando como comer bem, que pílula tomar, como descobrir nódulos nos seios, quais exames fazer anualmente, que probióticos eram bons para viver para sempre. Me diziam que eu estava estressada e que devia tomar um fitoterápico para acalmar os dentes que se degladiavam durante as noite de sono conturbado; que devia fazer atividade física para manter a forma, e deixar de comer carboidratos, uma semana sim, outra não; que todo mundo hoje em dia vivia assim, e que não devia me preocupar que a pílula que tomava havia matado algumas mulheres, porque todas as pílulas tinham esse risco em potencial.

Mas por incrível que pareça, foi um reles exame de colesterol que realmente mudou minha vida. Minto, um exame de colesterol e um de triglicérides, que se aglutinaram para formam a bela e perfeita gota d'água. Quando vi que esses exames estavam um pouco alterados e que a perspectiva era de que com a idade isso só iria piorar, tive uma espécie de epifania.

Nunca me senti confortável em depender de remédios para viver. Evitava-os ao máximo. Talvez porque sempre tive dificuldade em aceitar ajuda, química ou de outra natureza. Mas sentia lá no fundo da espinha uma convicção de que eu não era doente, não deveria estar doente e não ia estar doente. Não aos 27 anos de idade, não tendo sido bem criada e bem alimentada, não tendo acesso a todo tipo de informação e a capacidade de entender meu corpo. Não quando dançava, fazia yoga, caminhava. Não quando comia bem. Não quando havia me formado bióloga, mestre em antropologia nutricional. De que adiantava tudo isso se não para aplicar na minha própria vida, na minha própria saúde?

Estava há poucos meses em um processo terapêutico intensivo, mordendo a língua por todas as vezes que maldizia a psicanálise como o refúgio dos perdedores que não tinham amigos. E bastaram esses meses iniciais para desenvolver em mim a confiança para desafiar algo de que já desconfiava há muito tempo. Para acreditar que talvez eu, uma reles qualquer, uma reles mulher, pudesse saber mais sobre o meu corpo, sobre a minha saúde, do que o meu médico afirmava saber. E foi nesse momento que toda a minha formação científica se direcionou para mim mesma, para a minha saúde; foi quando virei meu próprio objeto de pesquisa. Decretei que seria a única pessoa autorizada a desenvolver experimentos em meu corpo.

Queria entender porque estava doente. Queria ir ao fundo disso tudo.

Investi meu tempo, meu dinheiro e minha energia em uma empreitada que só posso descrever como uma peregrinação, no sentido que Hakim Bey atribui ao termo no ensaio Superando o turismo. Ele descreve o peregrino como alguém que "[...] passa por uma mudança na consciência, e para o peregrino essa mudança é real. Peregrinação é uma forma de iniciação, e iniciação é uma abertura para outras formas de cognição".

Essa peregrinação me fez ver um mundo diferente, um mundo que meus olhos cansados não viam. Não viam aqui, não veriam em Istambul, não veriam em Beirute, não veriam nunca, nem em Marte, nem na Lua. Eu precisava arrancar esses velhos olhos e recriar o mundo.

Então, me joguei em um processo de desconstrução brutal e perigoso, incerta se sobreviveria, tamanha o ímpeto destrutivo que me tomou. Achei que nada fosse sobrar, que não haveria mais nada ali sob os escombros quando terminasse, mas o que descobri foi algo surpreendente. O que restou de tudo isso foi pura e simplesmente eu, eu mesma; não meu nome, não meu trabalho, não meus hobbys, não o que faço, não meu traços físicos, nada que fosse palpável ou descritível. Somente eu, minha intuição e meus desejos abstratos. Mas isso me parecia muito mais real, muito mais concreto do que tudo que já havia racionalizado, teorizado, tocado ou compreendido em minha vida. Depois dessa destruição em massa, sinto que esse ser em mim, esse ser que me habita, é finalmente livre.

Antes, o que pairava era essa sombra incansável, como se nunca fosse meio dia, como se nunca houvesse claridade absoluta, como se nunca houvesse aquele momento em que a sombra finalmente retorna e você pode pisar completa no chão, você e sua sombra; juntas e eternamente separadas.

Como só percebemos que estávamos dormindo ao acordar, ao ver a diferença entre a vida que pulsava em mim e o coma em que vivia anteriormente, só pude sentir uma raiva imensa, uma raiva pelo tempo que me havia sido tirado e por saber que tantas outras pessoas, assim como eu, ainda podiam estar adormecidas.

Vi, como esses meus novos olhos, que vivemos em uma sociedade necrófila, que estupra mulheres mortas; mulheres que ela mesma matou. E essa morte simbólica é anunciada muito cedo. Ela começa com a rejeição dos nossos corpos e de tudo o que nos diferencia do corpo padrão: o corpo masculino. Vi que, desde cedo, a nossa fertilidade é a nossa mais ingrata qualidade; que ser mulher, nesse mundo, é carregar uma doença crônica que a todo momento é alvo de escrutínio médico e científico. Vi também que tudo isso tinha seus porquês, suas abomináveis explicações sem sentido.

Mas tudo começou com um projeto científico. Nesse projeto, defini que o primeiro passo para recuperar a minha vida, seria recuperar o meu corpo.
E foi aí que decidi: vou largar a pílula!

continua....