Entre tragadas e enganações

Terceiro texto da série Tudo o que descobri sobre a pílula e por que decidi não tomá-la.

No indispensável documentário da BBC The century of the self, quatro episódios narram a história da apropriação da teoria de Freud pela publicidade e a política nos Estados Unidos. Começa com a trajetória do sobrinho de Freud, Edward Bernays, que leva as ideias psicanalíticas, em especial a de que as ações dos seres humanos têm motivações inconscientes, para o campo da publicidade. Até aquele momento, a propaganda era baseada, principalmente, nos fatos, nas propriedades e qualidades concretas dos produtos: como a durabilidade e resistência dos eletrodomésticos. O que Bernays fez, com grande sucesso, foi abandonar os fatos, enfatizando os sentimentos inconscientes que um produto poderia suscitar. Embora pouco se fale em Bernays, ele foi o principal responsável pelas mudanças que fazem com que, hoje, o consumo esteja associado à anseios e desejos, em oposição às necessidades.

Curiosamente, seu primeiro triunfo veio durante a década de 1920, ao convencer as mulheres a fumar.
Ao tentar entender porque as mulheres não fumavam, percebeu que elas viam o cigarro como um símbolo fálico, representante do poder masculino e, por isso, sentiam ser impróprio para uma mulher fumar. Bernays contratou, então, um grupo de mulheres para se passar por sufragistas em uma passeata, onde foram orientadas a tragar poderosamente em frente aos repórteres, se refererindo aos cigarros como "tochas da liberdade".  Com essa manobra, Bernays conseguiu transformar o cigarro em um símbolo do movimento feminista e do direitos das mulheres, e desde então, as tragadas de milhões de mulheres vêm trazendo sentimentos de  liberdade e emancipação, para depois culminar em cânceres, derrames e morte. Ao se aproveitar da ânsia das mulheres por autonomia, o cigarro passou a ser um paliativo assassino, em muitos casos a única mudança efetiva nas vidas de muitas donas de casa, que demoraram a ver ganhos reais em termos de oportunidades e conquistas.


Outro golpe publicitário veio com o desenvolvimento das misturas para bolo na década de 1940. Embora tenha sido pensado para facilitar a vida das donas de casa, as mulheres não estavam comprando o produto. Psicanalistas concluíram que as mulheres sentiam que não estavam tendo nenhum trabalho ao fazer o bolo instantâneo, e se sentiam envergonhadas em servir algo tão simples para seus maridos. A resposta era simples: bastava incluir um ovo na mistura. Assim, a prendada cozinheira poderia sentir que contribuiu de alguma forma para a receita. Com essa simples e maquiavélica mudança, as vendas foram alavancadas.

Esses dois exemplos servem para ilustrar o início de um processo que atualmente faz parte do nosso cotidiano. Já naturalizamos os apelos que nos invadem e se apropriam de nossos desejos de felicidade, amor, status e poder. Mas como nada é simples, o oposto benéfico das propagandas de cigarros que se entranham em nossos inconscientes não são as bizarras campanhas terroristas no verso dos maços, com fotos de fetos e pulmões lamacentos. Muito menos as proibições do estado, visando cortar os gastos públicos na área da saúde. 

No filme Sem fôlego (Blue in the face), há uma cena em que Jim Jarmush (diretor independente norte-americano) conversa sobre cigarros com Auggie (Harvey Keitel).
          
 Acho que muita gente começou a fumar porque foi glamourizado nos filmes de Hollywood. Você vê Marlon Brando, vê James Dean fumando um cigarro. Marlene Dietrich.
[...] Agora, você vai para Hollywood...Eles nos viciaram em cigarros. Você sabe, essa imagem de glamour. Você vai lá e não pode mais fumar em nenhum lugar. Se fumar depois de uma refeição, em um restaurante, ele vêm e dizem: fumar é proibido por lei em restaurantes, senhor...Eles que começaram, sabe...  

Na sequência, Lou Reed fala para a câmera, em sua imensurável sabedoria...

Sim, estou fumando cigarros, muitos amigos meus morreram disso. Por outro lado, enquanto eu estou fumando cigarros, eu não estou entornando uma garrafa de uísque em 15 minutos. Assim, vendo desse ponto de vista, é uma escolha saudável.


Essa relativização das escolhas individuais é de extrema importância para as mulheres, especialmente no que toca o uso da pílula. A liberdade não é um conceito absoluto e universal. A liberdade é contextual, contingente, mutante e escorregadia. Comecei esse texto com a história da introdução do cigarro na vida das mulheres porque ela não é muito diferente, em sua essência, da história da introdução da pílula anticoncepcional.

Quando digo que deixar de tomar a pílula foi uma escolha libertadora, falo de uma posição muito específica: a posição de uma mulher que não sofre ameaças de violência conjugal, que vive em uma cidade cosmopolita com acesso a recursos diversos, que conhece métodos contraceptivos seguros, não só em termos de eficiência, mas também em termos de efeitos colaterais a curto e longo prazo. Falo de um lugar de onde me é permitido fazer uma aposta de liberdade, mas tenho plena consciência de que esse não é o contexto de muitas mulheres. Vivemos lutas antigas, contra violências que vão desde o assédio nas ruas e no trabalho, até o estupro e o assassinato. Em cada realidade, uma escolha significa liberdade. Para mulheres em contextos de opressão, com valores religiosos retrógrados ou companheiros abusivos, não há espaço para se pedir o uso da camisinha, ou para colocar o diafragma. Em certas situações, a castração química é um mal menor. Significa a única possibilidade de controle.


Contudo, é preciso ter em mente que a aceitação da pílula pelas mulheres foi uma manobra tão elaborada quanto a que alçou o cigarro à ícone feminista.

Antes do desenvolvimento da pílula, eram inúmeros os métodos contraceptivos disponíveis: desde os menos interessantes, como a abstinência, passando por aleitamento prolongado, esponjas embebidas em diferentes substâncias, plantas, métodos de monitoramento (com e sem instrumentos) das épocas férteis do ciclo,  diafragma, DIU, camisinha etc. Mas todos essas opções existiam em uma atmosfera ainda regida por valores vitorianos, que cercavam de conservadorismo tudo que era relacionado ao sexo. Muitas farmácia não vendiam contraceptivos até o final da década de 1950 e, mesmo assim, tinham a venda restrita aos clientes que eram comprovadamente casados. Com a revolução sexual da década de 1960, os métodos contraceptivos se tornaram mais disponíveis.

A pílula foi aprovada para uso em 1960, causando uma mudança massiva no tipo de contracepção usado, com as mulheres assumindo maior responsabilidade pela contracepção. Ao mesmo tempo, a atitude dos médicos em relação à contracepção mudou drasticamente; antes relutantes em relação à contracepção, ao serem agraciados com o poder de prescrever a pílula, mudam rapidamente de posição.
 
Como com os cigarros, a pílula foi vendida, desde o início, como uma droga segura, que não trazia riscos à saúde. Mas não demorou para que as pílulas com altas dosagens de hormônios, disponíveis até 1975, fossem associadas à formação de coágulos responsáveis por derrames, amputações e mortes. Foi necessário muita pressão de médicos e consumidores para que esses riscos fossem reconhecidos e incluídos na bula.

Desde então, as pílulas de nova geração vêm sendo desenvolvidas, visando diminuir as dosagens de hormônios e os efeitos colaterais. Mas essas "novas" pílulas ainda trazem efeitos consideráveis, muitos deles cumulativos, resultado do desequilíbrio nutricional crônico causado pelo uso prolongado da pílula. E, ao contrário do que se esperaria, estudos têm mostrado que elas, na verdade, aumentam o risco de formação de coágulos, especialmente aquelas que contêm drosperinona, como Yaz e Yasmin, suspeitas de causar a morte de 23 mulheres no Canadá, neste ano.

A história é essencial para nos lembrar das negações, embustes, fraudes, manobras e apropriações que causaram tantas mortes em nome dos lucros de uma minoria; para que não nos esqueçamos que a banalidade do mal, como coloca Hannah Arendt, se vale do aval ou da alienação da grande maioria da população, que, ao se demitir de pensar, consentem às mais imperdoáveis atrocidades.

continua...

  







A castração química e o medo do escuro

 Segundo episódio da série Tudo o que descobri sobre a pílula e porque decidi não tomá-la.


Não vemos as coisas como elas são: as vemos como nós somos.
 Anaïs Nin

A decisão de parar de tomar a pílula não veio assim, de uma grande coragem e uma intuição clara, às quais cedi sem conflitos. Sendo uma mulher moderna, com mentalidade científica e extremamente racional, não conseguiria seguir meus instintos sem algum tipo de apoio teórico, de evidências que embasassem minhas suspeitas. Não naquele momento, pelo menos. Em parte, minha incapacidade emocional de tomar qualquer decisão que não compreendesse racionalmente, me obrigou a mergulhar em um mundo até então inexplorado, do qual eu não era nativa. Para conseguir fazer sentido de tudo isso, me afundei em uma pilha de leituras fascinantes. E o que eu não podia compreender era como todo esse conhecimento esteve escondido de mim por tantos anos. Nunca me falaram disso na escola, nem em casa, nem na faculdade, nem nas revistas femininas, nem na televisão. Hoje me é muito claro porque tudo isso permanece em um terreno ao qual poucos têm acesso. Mas esse é assunto para outro momento...

Inicialmente, ainda focada nas questões de sáude, nos meus exames alterados, busquei compreender os efeitos da pílula sobre o meu corpo; entender exatamente como ela funcionava. Por incrível que pareça, e me envergonho disso (especialmente pelo fato de ser bióloga), percebi que sabia muito pouco sobre os métodos contraceptivos que existem: sua forma de atuação, seus efeitos colaterais a curto e a longo prazo, a história do seu desenvolvimento e, principalmente, o tipo de relacionamento com o corpo que cada método permite ou incentiva.

Sempre tive a mania inconveniente (para os médicos, pelo menos), de abrir todos os meus exames e buscar na internet ou em livros informações sobre os resultados que recebia, as doenças de que suspeitava, os efeitos dos remédios que tomava. Embora os médicos sejam unânimes em condenar esse tipo de comportamento, hoje faço apologia a ele, e à autonomia e poder de decisão dos pacientes em relação a sua própria saúde. E, embora a internet possa ser um campo perigoso e de muita desinformação, acaba por tornar menos hierárquica a relação entre os médicos e os pacientes - é o mesmo que vem acontecendo nas escolas, para grande receio dos professores.

Eu continuava com minha inconveniência durante as consultas, com todas as perguntas possíveis e imagináveis sobre fisiologia e a forma de atuação dos medicamentos; ou com indagações sobre as razões para a prescrição de determinada dieta, vitamina ou procedimento. Por mais que fosse plenamente capaz de compreender os intrincados mecanismos do corpo, as interações de hormônios, as funções de cada órgão, sempre era dispensada com meias explicações e discursos obscuros, como se ninguém fosse capaz de compreender os complicadíssimos diagnósticos a que os brilhantes médicos chegavam depois de passar por décadas de estudos e treinamento. Quem era eu para tentar compreender? Como ousas questionar os desígnios de seu Médico? Aquele que sabe, aquele que vê. Percebi que a síndrome de House (SHO) - doença daquele médico "brilhante" do seriado, que sempre sabe mais do que qualquer paciente, não só sobre as suas doenças, mas sobre as suas mentiras e mais do que isso, sobre o que é melhor para eles - é uma doença perigosa, contagiosa e muito prevalente entre os médicos. (Tenho certeza que acabo de entrar na lista negra dos pronto-socorros de São Paulo; quicá do Brasil).

Descobri o valor da internet livre nesse época. E percebi também que, infelizmente, pode-se viver com pleno acesso à internet sem tirar nenhum proveito dela, ao usá-la de forma tímida, conservadora, buscando as mesmas autoridades, as mesmas mídias; lendo os portais tradicionais, se mantendo submisso às velhas fontes de (des)informação que dominam o rádio, a TV e a imprensa brasileira de forma geral. Mas, por sorte, sabia como fugir disso. Sabia que para achar o que precisava não bastava procurar por "efeitos colaterais da pílula", não bastava ir às fontes de informação oficial, aos sites de órgãos do governo. Tinha que arriscar ouvir as vozes que ninguém mais queria ouvir. As vozes que diziam o que eu queria dizer mas não podia, que falavam sobre o que eu sentia. As vozes que viam o mundo da mesma forma que eu. Por que o discurso dominante, o consenso assassino, é o que há uma verdade sobre as coisas; que as coisas são como elas são. E se há uma forma de acessar a essência dos fenômenos do mundo, essa forma é a Ciência. E todas as verdades que a Ciência descobriu foram bem divulgadas e estão disponíveis, ao acesso de todos.
Em parte, o ensino de Ciências, da forma como é feito hoje, contribui muito para que se aceite as descobertas científicas como dogmas, revelados por cientistas iluminados - geralmente homens do hemisfério Norte.

Nessa busca pelos becos obscuros da internet, descobri dois livros que falam de forma aprofundada sobre os efeitos da pílula e sobre como seria possível regular os hormônios, conseguir contracepção segura, eficiente e prática sem ela. Infelizmente os dois ainda não foram traduzidos para o português, mas pretendo falar sobre os pontos mais importantes deles aqui no blog. Para quem lê em inglês, sugiro dar um espiada nos trechos que estão disponíveis para acesso grátis.

O primeiro livro se chama The pill: are you sure it's for you? (A pílula: tem certeza que é para você?). Nesse livro, descobri a real lista dos efeitos colaterais da pílula, com indicações de diversos estudos científicos e relatos de tantas mulheres que sofreram os efeitos de depressão, perda de libido, mudanças de humor, aumento de peso, osteoporose, enxaquecas, trombose, fadiga crônica, câncer de mama, câncer de colo de útero, infertilidade, deficiências nutricionais e como eu já esperava, alterações nos níveis de colesterol e triglicérides. Mas como? Meu médico só havia me perguntado se eu fumava? A pílula não trazia riscos só para as mulheres fumantes, com mais de 35 anos? Não me haviam perguntado se eu aceitava esses riscos. Afinal, é tudo uma relação entre os riscos e os benefícios, não é? Com as informações que eu tinha agora, os riscos se mostravam cada vez menos aceitáveis e os benefícios bastante questionáveis. 

O segundo livro se chama Balance your hormones, balance your life: achieving optimal health and wellness through Ayurveda, Chinese Medicine, and Western Science (Equilíbre seus hormônios, equilibre sua vida:  alcançando saúde e bem-estar através da Ayurveda, da Medicina Chinesa e da Ciência Ocidental). (PS: Sim, sou adepta de abordagens holísticas, e não só em relação à saúde). Nesse livro as noções de sáude das medicinas orientais são mescladas à ciência moderna de uma forma bastante inovadora. Sugiro que os dois livros sejam lidos em conjunto, para quem se interessar.

Pretendo trazer mais informações desses dois livros em outros momentos, mas por ora deixo as indicações.

Não se enganem. Eu tinha medo do meu corpo, tinha pavor de ser deixada sozinha no mesmo quarto com ele, especialmente na TPM ou naqueles dias de cólica intensa. Tinha medo da acne, tinha medo de quem eu podia ser sem a pílula. A pílula é uma droga de estilo de vida, é a droga que tomei para ser uma mulher responsável, em controle do meu corpo. Eu era a primeira a exaltar a pílula como a responsável pela autonomia das mulheres, como grande conquista do movimento feminista. Tomá-la fazia parte da minha rotina há 9 anos. Tinha começado a tomá-la antes de ter ideia de quem eu era; de como meu corpo funcionava. Quem seria eu, sem a pílula? Não bastava simplesmente deixar de tomá-la, não era só uma decisão prática. Era o começo de uma reinvenção da minha identidade enquanto mulher. Era a mudança de uma lógica de controle autoritário sobre o meu corpo, para uma lógica de comunicação, aceitação e carinho.
Era a superação de uma lógica masculina, de dominação, conquista, força e controle, para uma lógica feminina, de diálogo, diversidade, aceitação, fluxo, interação, cooperação. Essa não era uma simples escolha individual; era uma ação política.


Não conheço nenhuma mulher - virgem, mãe, lésbica, casada, celibatária, tire ela seu sustento como dona de casa, garçonete de festas ou técnica de tomografia cerebral - para quem o próprio corpo não seja um problema fundamental: seus significados encobertos, sua fertilidade, seu desejo, sua assim chamada frigidez, seu discurso sangrento, seus silêncios, suas mudanças e mutilações, suas violações e maturações. Existe hoje, pela primeira vez, a possibilidade de converter nossa fisicidade ao mesmo tempo em conhecimento e poder.
Adrienne Rich - Of woman born: motherhood as experience and institution (Do nascimento da mulher: maternidade como experiência e instituição). Trecho citado no livro A mulher no corpo: uma análise cultural da reprodução, de Emily Martin. Rio de Janeiro: Garamond, 2006. p. 31.


Para mim, é muito claro que os métodos hormonais de contracepção são métodos de castração química, de anulação do ciclo menstrual, de não aceitação de uma fertilidade que passou a ser construída como patológica. E o problema mais grave é que nosso ciclo não está só relacionado com nossa fertilidade, com a função reprodutiva, mas com nossa saúde geral e com a plena potência do corpo feminino para atuar no mundo, com sua libido, com seus desejos.


A questão era se alguma mulher iria tomar uma pílula todo dia para prevenir-se da gravidez. Eles acreditam que ninguém vai fazer isso; não quando nem estão doentes, e elas não estão doentes.
James Balog, Merck Pharmaceuticals (The doctor's case against the pill, Barbara Seaman)


Se a questão era que as mulheres não estavam doentes para tomar uma pílula, bastava reavivar antigos fantasmas da fragilidade constitutiva das mulheres. Bastava patologizar seu ciclo reprodutivo.

[...] "A mulher do século XIX é uma eterna doente", escreve Yvone Knibiehler:
A medicina da Luzes apresenta as etapas da vida feminina como [uma sucessão de] crises temíveis, independentemente de qualquer patologia. Além da gravidez e do parto, a puberdade e a menopausa constituíam também, a partir de então, provocações mais ou menos perigosas; e as menstruações, feridas dos ovários, abalam, diz-se, o equilíbrio nervoso. Todas as estatísticas provam, com efeito, que as mulheres sofreram, no século XIX, de uma morbidez e uma mortalidade superior às dos homens. A opinião pública e numerosos médicos incriminam a 'fraqueza' da 'natureza feminina': causa biológica eterna e universal, que se arriscava a alimentar um fatalismo insuperável. 
Desclocamentos do Feminino, de Maria Rita Kehl. Citação do livro Corpos e corações, de Yvone Knibiehler.

Vivi por muito tempo atormentada pelos fantasmas dessa construção do corpo da mulher como um corpo falho, defeituoso em sua essência. Mas começava a acreditar que não estava doente. Contudo, isso não era suficiente para aniquilar o medo que ainda tinha do meu próprio corpo. Medo que teria que enfrentar. Já havia tentando anteriormente ficar sem a pílula; havia parado por 1 ano por conta própria. Mas o medo me fez recair no vício. O medo de que meu corpo fosse se voltar contra mim em convulsões dolorosas, cistos, cânceres e sangue em profusão. O medo do meu corpo, percebo agora, era o medo da escuridão, da incerteza, da falta de controle; da vida. E era com esse medo que teria que lidar.

Apesar de todos os nossos avanços, somos ainda crianças com medo do escuro. Estamos presos em uma baía rasa, de recifes perigosos e ondas gigantes. Mas somos uma espécie abissal, que precisa da pressão de toneladas de água e a escuridão das profundezas; do lodo e das fissuras cheias de magna quente. No nosso ambiente, no fundo do oceano, somos feios e estranhos, mas temos luz própria. Por isso, me oponho às lâmpadas fluorescentes, aos ambientes iluminados das empresas que alimentam gado intelectual; aos hospitais e seus holofotes, que brilham sobre os corpos das mulheres grávidas antes de cortá-las contra sua vontade; me oponho às luzes do conhecimento científico. Voltar à zona abissal é uma tarefa difícil, cheia de riscos. Não há garantias de que se vá sobreviver. O medo é o sentimento que impera. Não só o medo das ondas gigantescas que quebram nos recifes de corais; mas o medo do alto-mar, do silêncio e do peso da água. Nenhuma espécie brilha sob luzes artificiais; nada é gestado sob a ditadura dos holofotes. Estamos todos cegos pela luz. Somos uma espécie abissal, morrendo lentamente em poças temporárias na superfície.

Resolvi retornar. Atravessei a arrebentação e estou no começo de um mergulho longo e solitário. 

Nesse mergulho em apneia, encontrei cavalos-marinhos que cuidam de seus filhotes, peixes que se organizam em cardumes brilhantes e golfinhos que se chamam pelo nome. Nesse mergulho, vi os inacreditáveis homens-polvo dando prazer a uma mulher. O fundo do mar é estranho e incrível. Tem criaturas que nunca foram descritas. Há mistério e calor. Todos fogem de lá porque não podem acender suas lanternas brilhantes que não aguentam a pressão. Fogem porque esqueceram de seus outros sentidos adormecidos. Fogem porque, quando deixados no escuro, não têm como fugir da própria dor.

 Dream of the Fisherman´s wife (Sonho da mulher do pescador), de Katsushika Hokusai.


 Continua...