Precisamos falar sobre sangue

"A visão é sempre uma questão de poder de ver - e talvez da violência implícita em nossas práticas de visualização. Com o sangue de quem foram feitos os meus olhos?"

"I am rooted, but I flow" Virgínia Wolf. Imagem Catherine G. McElroy. Occupy Menstruation.



Enquanto escrevo, sangro. Não o sangue romântico dos escritores e suas musas pálidas, não um sangue metafórico que representa algo mais elevado. Sangro sangue. Sangue real, visível, palpável, que escorre das paredes do meu útero, desce pelo canal da minha vagina e deixa meu corpo entrando em um mundo no qual não é bem vindo. Não é o sangue da guerra, da valentia e da violência dos homens, esse sangue tão valorizado dos ferimentos de batalha. É sangue de humanidade e fragilidade, de inescapável ligação com a matéria orgânica.

Um dia antes de sangrar, sonhei que matava um coelho, um coelho preto, com uma faca pequena e muito afiada. Em um momento de absoluta animalidade, com andar inaudível, de felina, acertei-o com uma facada certeira no pescoço. Não me incomodei em matá-lo; estava em minha vestimenta animal. Mas vê-lo morto e ter que carregá-lo, enquanto suas vértebras se quebravam em minhas mãos ensanguentadas foi uma experiência onírica das mais brutais. Embora superficialmente possa parecer um sonho de caça, violência e valentia, foi muito mais um sonho sobre a minha fragilidade e a do coelho, sobre a carne tênue que eu cortei e o sangue e a vida que ele derramou. Foi um sonho sobre vértebras que se despedaçam em um ser fragilizado pela morte.

Lidar com sangue é lidar com vida e a possibilidade de sua perda. É lidar com a morte, o medo e a impotência frente a um mundo sobre o qual temos pouco controle. Expiramos em um segundo, há milhões de formas de morrer. E temos a desesperada necessidade de nos manter afastados desse aspecto brutal, dessa indiferença cósmica que faz questão de nos mostrar a cada segundo que, por mais que amemos, por mais profundas que sejam nossas experiências, por mais conhecimento que possamos obter do mundo, nada nos salva, nada nos dá garantias.

Desde o momento em que decidi escrever sobre a menstruação, sabia que teria que fazê-lo sangrando. É nesse momento de fragilidade que está um dos períodos mais férteis das mulheres. Não a fertilidade exterior, ligada à ovulação e à capacidade de gerar um vida, de povoar o mundo. É de uma fertilidade mais sutil e muito mais íntima. Uma fertilidade que não deve nada ao mundo. Que não demanda produtividade. Sem função aparente. Não é à toa que o maior proponente da supressão menstrual seja o médico brasileiro autor do livro Menstruação - a sangria inútil, sobre o qual pretendo falar em mais detalhes nos próximos textos.

Defendo com vigor o abandono das noções de utilidade e produtividade vendidas atualmente, especialmente para as mulheres. Elas garantem a destruição dos aspectos mais sutis da psicologia feminina em prol de sua inserção em um mundo hostil à tudo que se insere em seu corpo. Utilidade é um conceito bastante perigoso, geralmente apropriado por adeptos de visões extremamente limitadas do mundo, nesse caso homens, que se aventuram a falar do corpo de mulheres. Com pouca criatividade e pouca disposição à pensar de forma divergente, esses homens - porque a ciência e a história foram até recentemente feitas exclusivamente por eles- não tiveram a capacidade de atribuir qualquer sentido positivo às estruturas e eventos exclusivos do corpo feminino: clitóris, seios, menstruação, contracepção, gestação, parto, amamentação e menopausa. A violência obstétrica, as taxas recorde de cesáreas sem indicação médica, os procedimentos ritualísticos e não apoiados por evidências feitos durante o parto (episiotomia, tricotomia, posição deitada no parto etc), o incentivo à supressão menstrual, a indicação indiscriminada dos contraceptivos hormonais, a falta de diálogo entre médicos e pacientes sobre seus tratamentos e exames de saúde, o terrorismo em torno do câncer de mama e outros cânceres ginecológicos, os tabus que cercam a amamentação e a menopausa, tudo isso ilustra um cenário de completo desconhecimento e debate esclarecido (e corajoso) sobre o corpo feminino.

A história da medicina é das mais assustadoras, especialmente nos episódios ligados ao estudo anatômico do corpo feminino. Até pouco tempo não se sabia quase nada sobre o clitóris. Ainda hoje se disseminam mitos sobre o ponto G e o orgasmo feminino. A facilidade com que os processos do corpo feminino são descartados como inúteis demonstra a arrogância daqueles que se propõe a estudá-lo. Mais perigosa é a ideologia que sustenta a visão de que o corpo feminino é falho e que os processos e estruturas que lhes são particulares podem ser facilmente substituídos ou suprimidos sem trazer risco à saúde e à integridade psíquica das mulheres. O parto ilustra muito bem isso. A crença de que trazer um bebê ao mundo por meio de uma cirurgia é mais seguro e mais indicado, tanto para mãe quanto para a criança, só se sustenta porque tanto os médicos quanto as mulheres foram socializadas em uma cultura que considera descartáveis e facilmente substituíveis os fenômenos que se inscrevem nos corpos femininos. A menopausa é um ótimo contraexemplo, uma vez que as terapias de reposição hormonal (agora consideradas perigosas para a saúde) buscavam justamente negar e reverter os efeitos das mudanças hormonais características dessa fase. Vivemos a negação da menstruação e do parto ao mesmo tempo em que não aceitamos o fim da fertilidade. Somos extremamente infantis e avessos à mudanças. Como mulheres, somos penalizadas pela perspectiva parcial e limitada por meio da qual o mundo foi interpretado nos últimos milhares de anos.

O corpo é uma entidade que foi escravizada pelos desejos predatórios e vorazes de um mundo que só se sustenta com crescimento constante, produtividade ininterrupta e lucros crescentes, cada vez mais concentrados. A cisão natureza/cultura, mente/corpo, sujeito/objeto sustenta esse movimento ao negar os limites do corpo, do mundo natural e dos sujeitos em atender as demandas de nosso modo de vida. Assim, nos sentimos limitados quando temos que ceder aos desejos e necessidades do corpo: quando precisamos dormir, comer alimentos mais nutritivos, quando ficamos doentes, quando menstruamos, quando engravidamos. Não porque esse processos em si sejam limitantes, mas porque vivemos em um mundo hostil ao tempo, hostil ao corpo biológico e hostil à natureza.

Nessa guerra constante entre os desejos de uma mente colonizada por imagens de sucesso, movimento, atividade, vigor, nos ressentimos de nossos corpos que não permitem que avancemos sem levar-lhes em consideração. Construiu-se a ideia do corpo como simples aparato que carrega a mente, o que se vê claramente nas escolas (e nas empresas), onde os alunos (e funcionários) são forçados a passar grande parte dos seus dias sentados, em total negligência para com seus corpos. Não é à toa que as aulas de dança são atividades extracurriculares na maioria das escolas. Mas não se pode negligenciar o corpo por muito tempo, e as campanhas opressivas de saúde garantem que se saiba disso. Repletos de medo de se ver punidos por esses corpos despóticos e vingativos, todos atentam para as recomendações médico-nutricionais sobre como ter uma vida saudável, evitando que seus corpos se rebelem em espasmos de doenças e cânceres. A completa alienação em relação ao corpo soma-se ao medo de seus descontroles.

A tendência atual à construção de corpos perfeitos e magros por meio de cirurgias estéticas, dietas restritivas e as mais diversas práticas corporais busca construir corpos que realizem desejos de sucesso, de amor, de status. Cria-se um corpo escravizado pelos desejos de uma mente que se vê como onipotente. Mas, ao mesmo tempo, esse é um corpo que protege, pois ergue muralhas, afasta; é um "corpo invólucro"¹, "um corpo como forma de limite rígido entre o sujeito e o mundo". Não é, contudo, um corpo que deseja, um corpo que vive. Um corpo vivente, na concepção de Nelson Coelho Júnior, "é um corpo no mundo, em relação. Um corpo que escapa, assim, do corpo dos limites, do corpo imaginado pelo sujeito moderno. [...] Com o desejo de construir um corpo eterno, construímos um corpo morto, sem desejo, vampirizado em sua potência vital. [...] Corpos mortos não sangram.

Partilho da visão de Merleau-Ponty, de que" [...] não estou diante de meu corpo, estou dentro de meu corpo, ou mais certamente sou meu corpo." Enquanto sou corpo, viver fragmentada, viver como mente e  alienada do corpo é estar fraturada. Menstruar é parte de mim. Eu sou meu corpo. Meu corpo sangra.


Se a visão é um questão do poder de ver, precisamos poder ver mais. Poder ver de perspectivas distintas, poder ver a nós mesmas com olhos que se permitem sangrar. Não deixemos que as nossas próprias visões sobre os nossos corpos e as nossas identidades nos sejam impostos por olhares exógenos. Devemos aprender a olhar, com liberdade, com criatividade. Para nos livrarmos das violências implícitas em nossas práticas de visualização, precisamos arrancar nossos próprios olhos e crescer uma nova visão.
 


Continua...

¹ "Corpo construído, corpo vivido e corpo desejante - considerações contemporâneas sobre a noção de corpo na psicanálise e na filosofia de Merleau-Ponty", de Nelson Coelho Júnior.