Insegurança


Ela consegue subir, apoiando-se na água revolta, engasgando salgada, a espuma assassina. Era um afogamento. Ela. Sozinha. Perdia a vida. A achava.  Perdia novamente.

O mar é calmo.

Afunda como rocha, é cuspida com repulsa. Apoia-se na espuma, uma vez mais, e avista, ao longe, uma onda sobrenatural, que nunca se formaria em alto mar. Não daquele jeito, curvatura perfeita, projeção afiada pronta para cortá-la ao meio. Acena lá do céu; fala com ela. Não sente o golpe, vira chumbo e quase se deixa. Lembra-se pequena, presa em uma sequencia ininterrupta de ondas. O mar não respeitou o acordo, estava abaixo do umbigo, e mesmo assim se vingou, de sua pequenez, insensatez. Onde esta minha mãe?

Nunca se esqueceu. Aprendeu a amar desse jeito. Amou sua mãe, amou o mar. Sem nunca confiar. Assim é que se deve ser. Seguir uma natureza inegociável, energia, movimento. A quebra de acordos, traição.
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Caminha agora. Para a porta, em sua casa. Deve-se fecha-la antes de dormir. Fechar janelas, portas e frestas. Mas há um espectro branco, que quer (?) que precisa (?) que gostaria (?) de entrar.

É um fantasma, de uma velha, uma mulher, com entranhas que se deslocam, somem e reaparecem em seu abdome inchado de parasitas. Frente à última porta, a que finalmente deixaria sua casa segura, ela paralisa.

Onde está meu pai?
Estão todos dormindo.
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Observa agora,  a onda, a mesma, de uma edifício muito alto. Distante. Está segura. Mas onde estão meus irmãos? Ao mesmo tempo sabe que estão vivos, muito longe dali, mas podem tão bem estar mortos, lá embaixo, onde a onda passou. Sente respingos, está há alguns metros desse desastre.

...Espera o recuo....




Areia movediça


De onde vêm as pressões que sinto? É contra a natureza do mundo ou contra a minha que luto? Não consigo me debater desesperadamente; acho que me assusto com essa calma. Se for paz, o que duvido, devo aceitar. Devo aceitar? 
Fico dividida entre aceitar a paz como uma conquista, de uma maturidade que já percebe quais são os medos que merecem sobressalto e não mais se assusta com insetos menores, ou se, estupidamente, defrontada com uma tarântula negra, em tapete de pelos, não posso me mover. Por pavor, por não compreender a areia movediça na qual me coloquei, fui colocada, cai. É mortal um engano. Aceitar a paz quando em risco de morte, debater-se em areia movediça.  
Já ouvi, não consigo esquecer: “quando em dúvida, espere”. Veja além das seduções e dos medos. Reconheça-os. Não aja em seu nome. O que é esse motor interno e como reconhece-lo? Realmente é uma aventura difícil fazer algo diferente, realmente distinto do que a natureza e a cultura impulsionaram por tantos anos: dobrar um pano de prato, lavar um copo com a quantidade de sabão usada por outra pessoa, fazer movimentos circulares com toda a concentração de um sábio ao limpar as paredes...mas não por um novo mandamento, simplesmente mudar porque não há mais opção, porque se foi encurralado por sua própria busca, suas próprias investigações a um beco novo, com uma única possibilidade, sair. Estou eu nesse beco? Relutando contra mim mesma, essa entidade fantasmática, negra, espectral, que tenta me empurrar? Não me movo porque só há queda, um vazio desconhecido abaixo dessa plataforma de granito negra e fria, nesse quadrado estreito onde sento, nua, acreditando que posso me salvar? Esse vazio sou eu? Ou esse vazio é do mundo? 
Sou incapaz de criar sentidos? Fui marcada a ferro com uma lacuna tão fundamental quanto esta? Não à toa que a mãe, minha mãe, é uma entidade tão misteriosa, assustadora, oca e negra. Um abismo. Que anda a meu lado...Tantos querem que isso seja a condição humana, para não serem forçados a reconhecer que algumas pessoas não apresentam um buraco negro palpitante em seus peitos, que suga tudo, todos os esforços de sentido e alegria. Não é bem uma tristeza, não é bem ruim...mas demanda isolamento por sua força, pelo receio de sugar tudo de belo que resta lá fora, retirando seus sentidos como um tornado. Vive-se da esperança, de fé, de que há sim possibilidade de salvação, de luz. Isso só com as simulações de úteros, de cavernas, de fossas submarinas. Na vida, solidão. Não completa, não trágica. Um vazio acalentador. 

A anorexia infantil e as portas de vidro

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Em crônica contundente, escritora, artista e fotógrafa norte-americana relata doença da filha e revela como tornou-se onipresente associação insana entre sucesso e corpos “bem-feitos”
Por Maissa Bakri
À primeira vista, isso não seria de ser esperar em uma família como a de Kristi Belcamino: desde o dia em que deu à luz a uma menina, a palavra “dieta” foi banida das conversas da casa. Não se assinavam revistas de moda e a televisão era monitorada de perto. Daí se justifica seu espanto ao perceber que sua filha, com apenas nove anos de idade, estava anoréxica, pesando 22 quilos. Em uma crônica contundente para a revista norte-americana Salon, Kristi relata seu choque ao descobrir que a anorexia não respeita as portas nem dos mais conscientes lares.
Em meio ao tratamento da filha, Kristi descobriu que cerca de 10% dos que sofrem de anorexia nos Estados Unidos têm menos de dez anos de idade. Embora fosse constantemente lembrada de que não há um método de criação dos filhos capaz de prevenir a doença, a culpa não a abandonava. O tratamento de quadros anoréxicos é um processo longo e incerto, já que, além das restrições alimentares, as pessoas que sofrem de anorexia, com seu medo mórbido de engordar, não só restringem a ingestão de alimentos, mas fazem uso de medicamentos como laxantes e diurético, induzem o vômito e praticam exercícios físicos vigorosos. Para o alívio de Kristi, sua filha ainda não sabia que era possível vomitar para se livrar da comida, mas tentava queimar calorias em sessões frenéticas de dança irlandesa em seu quarto.
Depois de tratamento intensivo, a filha já está fora de perigo, mas não é possível afirmar que a batalha tenha sido vencida. Por mais surpreendente que possa parecer a ideia de que a anorexia infantil adentra sem pudores um lar como o de Kristi, devemos nos perguntar: seria de se esperar algo diferente em uma sociedade onde o discurso disseminado pela indústria cultural e pela publicidade associa beleza, saúde, sucesso, felicidade e poder à corpos magros? Por que iríamos achar que, ao fechar nossas portas de vidro, tudo ficaria bem?

De Patologias e Ficções

Publicado em Outras palavras, em 25/09/2013
http://outraspalavras.net/posts/de-patologias-e-ficcoes/

Kirsten Dunst (Justine) em cena do filme "Melancolia" (2011), de Lars von Trier
Kirsten Dunst (Justine) em cena do filme “Melancolia” (2011), de Lars von Trier
Quando estresse e depressão tornam-se epidemia, cura cabe a indivíduos, médicos e medicamentos? Ou caberia aliviar o mal-estar da civilização?
Por Maissa Bakri
No filme de Lars von Trier, Melancolia se refere tanto a um planeta que aparenta estar em rota de colisão com a Terra, quanto ao estado emocional de Justine, o qual Freud descreveu como um abatimento profundamente doloroso, marcado pela cessação de interesse pelo mundo exterior, a perda da capacidade de amar, a inibição de toda a atividade e a deterioração da auto-estima, culminando numa delirante expectativa de punição.
Em resenha para o The New York Times, A. O. Scott considera essa expectativa de punição umas das razões pelas quais as pessoas assistem aos filmes de Lars Von Trier. “O sofrimento – predominantemente, mas não exclusivamente, o sofrimento das mulheres – é tanto seu assunto favorito quanto seu método preferido.” A aproximação do planeta Melancolia reverte qualquer expectativa tradicional, tornando difícil argumentar contra o fatalismo e a depressão de Justine, que encontram ressonância frente à possibilidade iminente de aniquilação global.
Curiosamente, dois aspectos centrais do filme de Lars von Trier – a melancolia e o sofrimento das mulheres – se relacionam com o artigo “Quando a tristeza se tornou uma doença? Como patologizamos a vida cotidiana”, publicado no AlterNet. Diane Cole analisa dois livros recém-lançados, ainda sem tradução para o português, que questionam a expansão e consequente erosão dos conceitos de depressão e estresse, a ponto de se tornarem virtualmente insignificantes em termos de diagnóstico e tratamento.
Embora Melancolia pareça um termo antiquado e ultrapassado, Edward Shorter, professor de Psiquiatria e História da Medicina da Universidade de Toronto, Canadá, advoga por sua reabilitação. No livro How Everyone Became Depressed: the Rise and Fall of the Nervous Breakdown, Shorter demonstra como viemos a entender e utilizar de forma equivocada o conceito de depressão, em grande parte devido à ascensão dos antidepressivos e, principalmente, em função das constantes reinterpretações da depressão ao longo das cinco edições do Diagnostics and Statistical Manual (DSM) da Associação Americana de Psiquiatria.
Brigas políticas entre as diferentes facções encarregadas de definir enfermidades no DSM desfiguraram o significado de uma doença real do corpo e da mente. A depressão é uma doença reale muito séria, ele argumenta, não devendo ser diagnosticada tão promiscuamente. Shorter defende o uso do termo melancolia para diferenciar este estado da depressão severa que afeta corpo e mente, apresentando sintomas que vão além de flutuações de humor e “podem levar ao desespero, completa falta de prazer na vida e suicídio”. Ao cindir dois tipos diferentes de depressão, acredita ser possível ajudar os médicos a refinar seus tratamentos.
Tão sombrio quanto a depressão, o estresse vem sendo nomeado de “peste negra do século 21″. De acordo com relatório do Chartered Institute of Personnel and Development, o estresse já configura a principal causa de afastamento prolongado do trabalho no Reino Unido, superando derrames, ataques cardíacos, câncer e problemas na coluna. Mas o que é o estresse? Quais são suas causas e seus impactos na sociedade?


O segundo livro analisado por Dana Cole em seu artigo é One Nation under stress: the trouble with stress as an idea, de Dana Becker, professora de Serviço Social na Bryn Mawr College, nos Estados Unidos. Para Becker, encarar estresse como uma ansiedade que se origina de dentro, ao invés de vê-la como reação a pressões externas subverte o sentido histórico original da palavra. Becker cita o neurologista americano George M. Beard, ao afirmar que as pressões da vida moderna estavam forçando as pessoas além dos limites de energia que possuem. Beard provavelmente não ficaria surpreso ao ver o caso do jovem alemão Moritz Erhardt, possivelmente morto por excesso de trabalho.
A questão central na análise de Becker é: não seria responsabilidade da sociedade formular políticas públicas e sistemas de seguridade social que ajudem a diminuir os estressores sociais e econômicos que estão sobrecarregando as pessoas? Ela cunha o termo estressismo para descrever “a convicção atual de que as tensões da vida contemporânea são principalmente problemas individuais de estilo de vida a ser resolvidos por meio do manejo do estresse, em oposição à convicção de que essas tensões estão ligadas a forças sociais e devem ser resolvidas principalmente por meios sociais e políticos”.
Um exemplo do que Becker chama de estressismo é a ideia de que as mães que trabalham fora de casa devem aprender a lidar com seus múltiplos papéis, além de manejar o estresse gerado pelo acúmulo de responsabilidades profissionais, no cuidado com os filhos e com a família, para manter a própria saúde e se manter em dia com as exigências estéticas. Esse estereótipo é tão disseminado e glorificado que fica fácil esquecer a suposição que está por trás: manobrar múltiplos papéis é um problema principalmente das mulheres, não dos homens, ou da família, ou da sociedade.
Para Cole, os dois autores alertam para o perigo de se perder a noção do impacto das pressões sociais e econômicas que vivemos. Pressões estas que, se fossem enfrentadas, poderiam promover mudanças efetivas e melhor qualidade de vida para toda a população – talvez, especialmente para as mulheres.
Vivemos um cenário no qual, ao mesmo tempo em que doenças reais estão sendo soterradas por uma enxurrada de distúrbios inventados, eventos que fazem parte da vida e características individuais ou de grupos (etários, de gênero, de orientação sexual) se tornam patologias.
Infância, menstruação, gravidez, parto, menopausa, timidez, luto, gula, masculinidade, feminilidade, impotência, sobrepeso, tristeza, criatividade, expressividade, alegria, rebeldia, questionamento de autoridade. Nesse crescente fenômeno de patologização da vida, as doenças estão se tornando ficções lucrativas nas mãos da indústria médica e farmacêutica e armas convenientes para garantir o controle social e a subordinação às injustiças e desigualdades.
É difícil evitar comparações com a Melancolia, planetária e pessoal, retratada por Lars von Trier. No mundo da não-ficção, tanto o abatimento profundo da depressão enquanto doença real como o sofrimento causado por estruturas econômicas e sociais opressivas, especialmente para as mulheres (e os pequenos que cria), estão sendo negligenciados. Talvez a colisão planetária que nos assombra seja justamente a realidade que vivemos na Terra.

A agonia de eros


[…] El amor es una conclusión absoluta porque presupone la muerte, la renuncia a sí mismo. La “verdadera esencia del amor” consiste en “renunciar a la conciencia de sí mismo, en olvidarse de sí en otra mismidad”. La conciencia del esclavo hegeliano es limitada; él no es capaz de la conclusión absoluta, porque no tiene capacidad de renunciar a la conciencia de sí mismo, o sea, no es capaz de morir. El amor como conclusión absoluta pasa a través de la muerte. Ciertamente se muere en lo otro, pero a esta muerte le sigue un retorno hacia sí. Y el retorno reconciliado desde el otro hacia sí es todo menos una apropiación violenta de otro, que falsamente ha sido elevada a figura principal del pensamiento hegeliano. Es más bien el don del otro, al que preceda la entrega, el abandono de mí mismo. El sujeto depresivo-narcisista no es capaz de ninguna conclusión. Y sin conclusión todo se derrama y se esfuma. Así, este sujeto no tiene ninguna imagen estable de sí mismo, que es también una forma de conclusión. No es casual que los síntomas de la depresión incluyan la indecisión, la incapacidad de resolución. La depresión es característica de un tiempo en el que, por exceso de abrir e deslimitar, se ha perdido la capacidad de cerrar, de concluir. Desaprendemos a morir, porque no somos capaces de concluir la vida. También el sujeto del rendimiento es incapaz de cierre, de conclusión. Se rompe bajo la coacción de tener que producir cada vez más. […]


La agonía del Eros, Byung-Chul Han.




Transgressão

Jerek Kubicki
Só há mulher na descontornar. De uma linha invisível, um limite ideal, um destino de carne, a que se pode decidir, nunca conscientemente, adequar-se ou desafiar. Há mulheres gordas, cheias de substância - pele, gordura, músculo, osso, sangue - que não parecem transgredir o espaço, esse é seu traçado, essa linha alguém traçou em seu lugar, no início dos tempos, neste século, ou desde a primeira explosão estelar.
Há mulheres, outras, muito magras, que se rebelaram e, com coragem, descolaram-se de qualquer determinação sobrenatural ou genética que as submetem a ocupar espaços sufocantes, os quais não querem adentrar. São intrigantes, pois transparecem a falta, algo que escapa, deveriam ter mais; mais ombros, mais coxas, menos nariz, dedos mais longos. São aquém.
Há mulheres imensas, com bundas grandes, barrigas salientes, peitos enormes, que claramente desafiam uma herança genética, uma família invisível, a cultura da fome. Fascinam pela propriedade com que caminham, pela voz que ressoa em toda essa carne em excesso, pelo esforço que fazem para ser além.
É muito difícil determinar a transgressão. Talvez não seja absoluta. Não está no transbordar, no espaço que dilaceram com seus corpos, mas na sua decisão de se afastar, com muita dor e contorções, desse traçado feito por um artista indiferente a qualquer desejo de mulher, a qualquer noção de brincadeira a qualquer vislumbre de um abismo. Além e aquém de qualquer entendimento.

Sons negros: sedução

Sob a pele, 2013, de Jonathan Glazer.

Parece nome de filme ruim, mistura de sexo e horror. O que não deixa de ser verdade. Certa vulgaridade. Pensando sobre a sedução, visualizo imagens perturbadoras, que afetam meus órgãos; apertam glândulas, em desespero de excreção. Impõem-se sobre mim imagens, noturnas, de teias, silêncio, presas e uma aranha, grande, mas de pernas finas e alongadas, que se dobram em sua articulação maligna e tocam, quase sem peso, fios muito delicados, dos mais resistentes.
Em sua aproximação sobrenatural à presa - imponência que resulta da confiança em sua própria tecnologia, mesmo que não se possa reivindicar mérito – há um espaço, uma falta, um vazio, que se espera preencher pelo devoramento de um inseto indefeso, completamente rendido, que não mais se debate, e se entrega ao prazer da morte.Sedução é estar nesse lugar, com a mais profunda presença, sem saber que papel se está desempenhando: presa, predador ou teia.

Cronofagia - o tempo é feminino

O recente episódio do estupro coletivo da adolescente de 16 anos no Rio de Janeiro reacendeu uma das batalhas mais sangrentas das mulheres contra o sistema patriarcal, a luta pela integridade de seu corpo. As furiosas investidas religiosas e retrógradas na legislação do aborto, a naturalização e espetacularização do estupro e do feminicídio, a erradicação física das mulheres dos ministérios, a valorização do recato e da subordinação pela mídia, são episódios recentes que se inserem em um panorama sombrio, de retrocessos imensuráveis.

Quando me deparo com esse cenário, penso nos homens. Não como indivíduos, mas como ideais, de algo que não consigo alcançar concretamente. Penso nos motivos que os levam a restaurar uma honra perdida, na angústia necessária para mover tamanha violência, nas demandas doentes por provas de masculinidade, nas surras levadas na infância, no medo de não ser forte o suficiente, no pavor da impotência, de perder algo que nunca foi seu, nem de ninguém. Preocupo-me bastante com essa cultura patriarcal e falocêntrica, da força e da velocidade, pois os mais vulneráveis são sempre necessários, como instrumentos, objetos de um gozo mórbido, um dos poucos que restaram, as mulheres e as crianças, para aliviar a sensação de impotência dos homens quando a vida lhes foge do controle. Quando perdem guerras imaginárias, sofrem humilhações diárias, perdem seu reflexo no espelho, perdem seu emprego, perdem sua honra, somos sempre uma forma doentia de reencontro do homem com sua face mais abominável, aquela, fálica, que não aceita limites, que não sabe se abrir ao mundo, à diferença, ao outro, aquela que não compartilha, não escuta e não se entrega, nem ao sofrimento, nem ao amor.

Digo homens como ideal, pois em muitos momentos, em muitas instâncias, as mulheres não se distinguem dos homens, são, talvez, limitadas por sua força física, e pela cultura que as desencoraja à violência, mas abusam de seus filhos, os espancam, pois as crianças são para elas aquele poço onde se pode, nunca sem dor, reaver um pouco de sua honra perdida. Criam homens ideais que irão restituir a elas tudo que o mundo lhes deve, serão seu braço armado, não de todo incompreensível nesse mundo que lhes traz sofrimento diário, as desvaloriza, as abandona e as violenta. Odiarão suas filhas, de forma sutil, de forma constante, por seus excessos de sexualidade, ou por sua falta, transformarão meninas em homens, e homens em super-homens. Mulheres adultas condenarão suas irmãs ao fogo que pune, ao estupro que corrige, à gravidez que purifica, por sua autonomia e liberdade, por suas escolhas e por sua sexualidade. Pois, infelizmente, o ódio às mulheres, e ao feminino, não discrimina, alastra-se com leveza e gosto, saltando por classe social, gênero, contexto cultural e período histórico.

E os homens adultos, pais, tios, amigos, que direcionam sua energia à conquista do mundo, à ascensão das ladeiras artificiais do capitalismo, são figuras ausentes, fantasmas, que com sua ausência ensinam muito mais do que imaginam. Ensinam o que é ser um homem de família, o que se valoriza em nossa cultura, de quem é o papel de cuidador, quem tem status, ensinam que homens estão pouco disponíveis para os outros e que são capazes de roubar o tempo para si. Os homens, enquanto fantasmas são cronófagos; em sua violência comem o tempo, feminino, de forma antidemocrática, tomam o tempo para si, enquanto reclamam de excesso de trabalho. Tomam o tempo para a construção de um ideal vazio, sem substância. Um ideal masculino, um ideal de poder e invulnerabilidade. Não são eles que levam os filhos doentes ao médico e perdem dias de trabalho, não cuidam do mundo, nem deles mesmos.

O tempo é feminino, anda com autonomia, sem se importunar com a ansiedade, com a fome, com a vida e a morte. O tempo é feminino, pois aceita o que é, e se rende, não se abala em sua caminhar. É devorado por homens em nossa sociedade, pois o tempo é livre, e os desafia, a cada minuto, a cada respirar.

Três mulheres

Amy Kutler,  Above the Fjord, 2010.

Neste Dia das Mulheres, sinto saudades. De três mulheres que estão longe, partes de mim exiladas, no tempo, no espaço.

Minha avó, de quem lembro a cada vez que lavo alfaces. Ela gostava de comer aqueles pequenos brotos cheios de folhinhas crocantes, embaladas como um presente pelas folhas maiores. Confesso que as alfaces ainda me são um prazer amargo, mas sei o que é um alimento de verdade.

Minha irmã, que com seus olhões verdes sempre ganhava de mim quando competíamos para ver quem aguentava mais tempo sem piscar. Sinto que aprendi algo sobre meus limites, sobre a raiva e a vontade de ganhar, mas aprendi mais sobre o prazer de ver o mundo, de olhos abertos, sem medo, até que caiam lágrimas de excesso de olhar.

Minha mãe, que enfrentava os chiliques mais agudos e desesperados toda vez que tinha que passar merthiolate no joelho dessa filha que não parava de dar estrelas no quintal. Sei que esse cuidado me permitiu dançar, cada dia mais, cada dia com menos receio e mais afinco, certa de que algo iria me curar caso meus desejos de movimento superassem as habilidades do meu corpo, produzindo escoriações, dores e frustrações, que podiam ser cicatrizadas, mesmo que à custa de mais dores e gritos desesperados.

Sinto falta dos infinitos detalhes dessas mulheres, que borbulham em mim; essas partes estranhas, exógenas, que não se integram totalmente, mas nunca vão se dissolver, nunca vão se desprender de mim. Fico impressionada como a vida pode ser tão criativa, compondo detalhes tão bonitos, de três mulheres tão complexas. Vejo que esses detalhes estão aqui, em mim, nesse dia, nessas palavras, talvez lidas por outras mulheres, atingindo algo nelas, em uma rede tão antiga quanto a primeira gestação, a primeira mulher que dividiu seu corpo com outra. Em face aos tantos problemas que vivemos hoje, fico tocada pela beleza disso tudo. 

Sobre a maldade

Etsuko Fukuya
Hoje não pude sustentar a beleza do dia. Não fui capaz de refletir o bom humor do tempo. Esgotei-me antes do pôr-do-sol. Talvez porque tive uma manhã de comunhão com as forças da natureza, em um ímpeto de perseguir borboletas. Pequenas e sedosas; delicadas borboletas brancas e amarelas que ziguezagueavam em um jardim improvisado dessa cidade de chumbo. Por um momento, pensei em tocá-las, só porque eram belas, só porque expiram em um dia e voam com tanta leveza; porque oscilam no ar, traçando caminhos não lineares, pouco eficientes, só para aproveitar todas as dimensões que o céu lhes dá. Faltam-lhe forças, por isso cedem aos menores caprichos das correntes quentes que emergem do subsolo. Cedem felizes, contudo, pois não há opção; sua impotência frente ao mar de moléculas que é seu meio as liberta.


Sempre tive aversão aos insetos que voam. Os únicos que tolerava eram essas borboletas frágeis como papeis de seda. Nunca suportei a visão das nervuras e segmentos dos insetos maiores, com pés e antenas proeminentes e o poder de voo das asas avantajadas. Acabava envergonhava dos pulos e corridas desesperadas que meu corpo dava, vergonha a que os adultos não mais se sujeitam quando defrontados com os próprios medos. Dizem que as fobias encarnam um horror inominável. Nas asas asquerosas das mariposas, em seu corpo gordo e peludo se projeta um horror primordial; horror da dissolução no éter e no caos pela ruptura de uma lei cruel e sobrenatural. Sinto esse medo especialmente nas manchas pretas e cinzas desses bichos nojentos. É um abismo intransponível, um asco incomparável. O que se condensa nesse inseto alado o deixa pesado como uma estrela morta, tornada buraco negro. Vejo mariposas obesas jogadas nas calçadas, com seu ventre gordo e hirsuto esperando para ser esmagadas por um pedestre qualquer, com sapato social, que nada teme porque transformou o horror em purpurina e luzes de natal. O horror condensado não se sublima com a morte de uma libélula ou de um besouro. Já matei um ou outro. Dele não se foge com a prisão de pobres, a exclusão de estrangeiros, a matança de etnias, o estupro de mulheres ou a destruição da natureza. Dele não se foge. Dele não se foge.