Areia movediça


De onde vêm as pressões que sinto? É contra a natureza do mundo ou contra a minha que luto? Não consigo me debater desesperadamente; acho que me assusto com essa calma. Se for paz, o que duvido, devo aceitar. Devo aceitar? 
Fico dividida entre aceitar a paz como uma conquista, de uma maturidade que já percebe quais são os medos que merecem sobressalto e não mais se assusta com insetos menores, ou se, estupidamente, defrontada com uma tarântula negra, em tapete de pelos, não posso me mover. Por pavor, por não compreender a areia movediça na qual me coloquei, fui colocada, cai. É mortal um engano. Aceitar a paz quando em risco de morte, debater-se em areia movediça.  
Já ouvi, não consigo esquecer: “quando em dúvida, espere”. Veja além das seduções e dos medos. Reconheça-os. Não aja em seu nome. O que é esse motor interno e como reconhece-lo? Realmente é uma aventura difícil fazer algo diferente, realmente distinto do que a natureza e a cultura impulsionaram por tantos anos: dobrar um pano de prato, lavar um copo com a quantidade de sabão usada por outra pessoa, fazer movimentos circulares com toda a concentração de um sábio ao limpar as paredes...mas não por um novo mandamento, simplesmente mudar porque não há mais opção, porque se foi encurralado por sua própria busca, suas próprias investigações a um beco novo, com uma única possibilidade, sair. Estou eu nesse beco? Relutando contra mim mesma, essa entidade fantasmática, negra, espectral, que tenta me empurrar? Não me movo porque só há queda, um vazio desconhecido abaixo dessa plataforma de granito negra e fria, nesse quadrado estreito onde sento, nua, acreditando que posso me salvar? Esse vazio sou eu? Ou esse vazio é do mundo? 
Sou incapaz de criar sentidos? Fui marcada a ferro com uma lacuna tão fundamental quanto esta? Não à toa que a mãe, minha mãe, é uma entidade tão misteriosa, assustadora, oca e negra. Um abismo. Que anda a meu lado...Tantos querem que isso seja a condição humana, para não serem forçados a reconhecer que algumas pessoas não apresentam um buraco negro palpitante em seus peitos, que suga tudo, todos os esforços de sentido e alegria. Não é bem uma tristeza, não é bem ruim...mas demanda isolamento por sua força, pelo receio de sugar tudo de belo que resta lá fora, retirando seus sentidos como um tornado. Vive-se da esperança, de fé, de que há sim possibilidade de salvação, de luz. Isso só com as simulações de úteros, de cavernas, de fossas submarinas. Na vida, solidão. Não completa, não trágica. Um vazio acalentador. 

A anorexia infantil e as portas de vidro

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Em crônica contundente, escritora, artista e fotógrafa norte-americana relata doença da filha e revela como tornou-se onipresente associação insana entre sucesso e corpos “bem-feitos”
Por Maissa Bakri
À primeira vista, isso não seria de ser esperar em uma família como a de Kristi Belcamino: desde o dia em que deu à luz a uma menina, a palavra “dieta” foi banida das conversas da casa. Não se assinavam revistas de moda e a televisão era monitorada de perto. Daí se justifica seu espanto ao perceber que sua filha, com apenas nove anos de idade, estava anoréxica, pesando 22 quilos. Em uma crônica contundente para a revista norte-americana Salon, Kristi relata seu choque ao descobrir que a anorexia não respeita as portas nem dos mais conscientes lares.
Em meio ao tratamento da filha, Kristi descobriu que cerca de 10% dos que sofrem de anorexia nos Estados Unidos têm menos de dez anos de idade. Embora fosse constantemente lembrada de que não há um método de criação dos filhos capaz de prevenir a doença, a culpa não a abandonava. O tratamento de quadros anoréxicos é um processo longo e incerto, já que, além das restrições alimentares, as pessoas que sofrem de anorexia, com seu medo mórbido de engordar, não só restringem a ingestão de alimentos, mas fazem uso de medicamentos como laxantes e diurético, induzem o vômito e praticam exercícios físicos vigorosos. Para o alívio de Kristi, sua filha ainda não sabia que era possível vomitar para se livrar da comida, mas tentava queimar calorias em sessões frenéticas de dança irlandesa em seu quarto.
Depois de tratamento intensivo, a filha já está fora de perigo, mas não é possível afirmar que a batalha tenha sido vencida. Por mais surpreendente que possa parecer a ideia de que a anorexia infantil adentra sem pudores um lar como o de Kristi, devemos nos perguntar: seria de se esperar algo diferente em uma sociedade onde o discurso disseminado pela indústria cultural e pela publicidade associa beleza, saúde, sucesso, felicidade e poder à corpos magros? Por que iríamos achar que, ao fechar nossas portas de vidro, tudo ficaria bem?

De Patologias e Ficções

Publicado em Outras palavras, em 25/09/2013
http://outraspalavras.net/posts/de-patologias-e-ficcoes/

Kirsten Dunst (Justine) em cena do filme "Melancolia" (2011), de Lars von Trier
Kirsten Dunst (Justine) em cena do filme “Melancolia” (2011), de Lars von Trier
Quando estresse e depressão tornam-se epidemia, cura cabe a indivíduos, médicos e medicamentos? Ou caberia aliviar o mal-estar da civilização?
Por Maissa Bakri
No filme de Lars von Trier, Melancolia se refere tanto a um planeta que aparenta estar em rota de colisão com a Terra, quanto ao estado emocional de Justine, o qual Freud descreveu como um abatimento profundamente doloroso, marcado pela cessação de interesse pelo mundo exterior, a perda da capacidade de amar, a inibição de toda a atividade e a deterioração da auto-estima, culminando numa delirante expectativa de punição.
Em resenha para o The New York Times, A. O. Scott considera essa expectativa de punição umas das razões pelas quais as pessoas assistem aos filmes de Lars Von Trier. “O sofrimento – predominantemente, mas não exclusivamente, o sofrimento das mulheres – é tanto seu assunto favorito quanto seu método preferido.” A aproximação do planeta Melancolia reverte qualquer expectativa tradicional, tornando difícil argumentar contra o fatalismo e a depressão de Justine, que encontram ressonância frente à possibilidade iminente de aniquilação global.
Curiosamente, dois aspectos centrais do filme de Lars von Trier – a melancolia e o sofrimento das mulheres – se relacionam com o artigo “Quando a tristeza se tornou uma doença? Como patologizamos a vida cotidiana”, publicado no AlterNet. Diane Cole analisa dois livros recém-lançados, ainda sem tradução para o português, que questionam a expansão e consequente erosão dos conceitos de depressão e estresse, a ponto de se tornarem virtualmente insignificantes em termos de diagnóstico e tratamento.
Embora Melancolia pareça um termo antiquado e ultrapassado, Edward Shorter, professor de Psiquiatria e História da Medicina da Universidade de Toronto, Canadá, advoga por sua reabilitação. No livro How Everyone Became Depressed: the Rise and Fall of the Nervous Breakdown, Shorter demonstra como viemos a entender e utilizar de forma equivocada o conceito de depressão, em grande parte devido à ascensão dos antidepressivos e, principalmente, em função das constantes reinterpretações da depressão ao longo das cinco edições do Diagnostics and Statistical Manual (DSM) da Associação Americana de Psiquiatria.
Brigas políticas entre as diferentes facções encarregadas de definir enfermidades no DSM desfiguraram o significado de uma doença real do corpo e da mente. A depressão é uma doença reale muito séria, ele argumenta, não devendo ser diagnosticada tão promiscuamente. Shorter defende o uso do termo melancolia para diferenciar este estado da depressão severa que afeta corpo e mente, apresentando sintomas que vão além de flutuações de humor e “podem levar ao desespero, completa falta de prazer na vida e suicídio”. Ao cindir dois tipos diferentes de depressão, acredita ser possível ajudar os médicos a refinar seus tratamentos.
Tão sombrio quanto a depressão, o estresse vem sendo nomeado de “peste negra do século 21″. De acordo com relatório do Chartered Institute of Personnel and Development, o estresse já configura a principal causa de afastamento prolongado do trabalho no Reino Unido, superando derrames, ataques cardíacos, câncer e problemas na coluna. Mas o que é o estresse? Quais são suas causas e seus impactos na sociedade?


O segundo livro analisado por Dana Cole em seu artigo é One Nation under stress: the trouble with stress as an idea, de Dana Becker, professora de Serviço Social na Bryn Mawr College, nos Estados Unidos. Para Becker, encarar estresse como uma ansiedade que se origina de dentro, ao invés de vê-la como reação a pressões externas subverte o sentido histórico original da palavra. Becker cita o neurologista americano George M. Beard, ao afirmar que as pressões da vida moderna estavam forçando as pessoas além dos limites de energia que possuem. Beard provavelmente não ficaria surpreso ao ver o caso do jovem alemão Moritz Erhardt, possivelmente morto por excesso de trabalho.
A questão central na análise de Becker é: não seria responsabilidade da sociedade formular políticas públicas e sistemas de seguridade social que ajudem a diminuir os estressores sociais e econômicos que estão sobrecarregando as pessoas? Ela cunha o termo estressismo para descrever “a convicção atual de que as tensões da vida contemporânea são principalmente problemas individuais de estilo de vida a ser resolvidos por meio do manejo do estresse, em oposição à convicção de que essas tensões estão ligadas a forças sociais e devem ser resolvidas principalmente por meios sociais e políticos”.
Um exemplo do que Becker chama de estressismo é a ideia de que as mães que trabalham fora de casa devem aprender a lidar com seus múltiplos papéis, além de manejar o estresse gerado pelo acúmulo de responsabilidades profissionais, no cuidado com os filhos e com a família, para manter a própria saúde e se manter em dia com as exigências estéticas. Esse estereótipo é tão disseminado e glorificado que fica fácil esquecer a suposição que está por trás: manobrar múltiplos papéis é um problema principalmente das mulheres, não dos homens, ou da família, ou da sociedade.
Para Cole, os dois autores alertam para o perigo de se perder a noção do impacto das pressões sociais e econômicas que vivemos. Pressões estas que, se fossem enfrentadas, poderiam promover mudanças efetivas e melhor qualidade de vida para toda a população – talvez, especialmente para as mulheres.
Vivemos um cenário no qual, ao mesmo tempo em que doenças reais estão sendo soterradas por uma enxurrada de distúrbios inventados, eventos que fazem parte da vida e características individuais ou de grupos (etários, de gênero, de orientação sexual) se tornam patologias.
Infância, menstruação, gravidez, parto, menopausa, timidez, luto, gula, masculinidade, feminilidade, impotência, sobrepeso, tristeza, criatividade, expressividade, alegria, rebeldia, questionamento de autoridade. Nesse crescente fenômeno de patologização da vida, as doenças estão se tornando ficções lucrativas nas mãos da indústria médica e farmacêutica e armas convenientes para garantir o controle social e a subordinação às injustiças e desigualdades.
É difícil evitar comparações com a Melancolia, planetária e pessoal, retratada por Lars von Trier. No mundo da não-ficção, tanto o abatimento profundo da depressão enquanto doença real como o sofrimento causado por estruturas econômicas e sociais opressivas, especialmente para as mulheres (e os pequenos que cria), estão sendo negligenciados. Talvez a colisão planetária que nos assombra seja justamente a realidade que vivemos na Terra.

A agonia de eros


[…] El amor es una conclusión absoluta porque presupone la muerte, la renuncia a sí mismo. La “verdadera esencia del amor” consiste en “renunciar a la conciencia de sí mismo, en olvidarse de sí en otra mismidad”. La conciencia del esclavo hegeliano es limitada; él no es capaz de la conclusión absoluta, porque no tiene capacidad de renunciar a la conciencia de sí mismo, o sea, no es capaz de morir. El amor como conclusión absoluta pasa a través de la muerte. Ciertamente se muere en lo otro, pero a esta muerte le sigue un retorno hacia sí. Y el retorno reconciliado desde el otro hacia sí es todo menos una apropiación violenta de otro, que falsamente ha sido elevada a figura principal del pensamiento hegeliano. Es más bien el don del otro, al que preceda la entrega, el abandono de mí mismo. El sujeto depresivo-narcisista no es capaz de ninguna conclusión. Y sin conclusión todo se derrama y se esfuma. Así, este sujeto no tiene ninguna imagen estable de sí mismo, que es también una forma de conclusión. No es casual que los síntomas de la depresión incluyan la indecisión, la incapacidad de resolución. La depresión es característica de un tiempo en el que, por exceso de abrir e deslimitar, se ha perdido la capacidad de cerrar, de concluir. Desaprendemos a morir, porque no somos capaces de concluir la vida. También el sujeto del rendimiento es incapaz de cierre, de conclusión. Se rompe bajo la coacción de tener que producir cada vez más. […]


La agonía del Eros, Byung-Chul Han.




Transgressão

Jerek Kubicki
Só há mulher na descontornar. De uma linha invisível, um limite ideal, um destino de carne, a que se pode decidir, nunca conscientemente, adequar-se ou desafiar. Há mulheres gordas, cheias de substância - pele, gordura, músculo, osso, sangue - que não parecem transgredir o espaço, esse é seu traçado, essa linha alguém traçou em seu lugar, no início dos tempos, neste século, ou desde a primeira explosão estelar.
Há mulheres, outras, muito magras, que se rebelaram e, com coragem, descolaram-se de qualquer determinação sobrenatural ou genética que as submetem a ocupar espaços sufocantes, os quais não querem adentrar. São intrigantes, pois transparecem a falta, algo que escapa, deveriam ter mais; mais ombros, mais coxas, menos nariz, dedos mais longos. São aquém.
Há mulheres imensas, com bundas grandes, barrigas salientes, peitos enormes, que claramente desafiam uma herança genética, uma família invisível, a cultura da fome. Fascinam pela propriedade com que caminham, pela voz que ressoa em toda essa carne em excesso, pelo esforço que fazem para ser além.
É muito difícil determinar a transgressão. Talvez não seja absoluta. Não está no transbordar, no espaço que dilaceram com seus corpos, mas na sua decisão de se afastar, com muita dor e contorções, desse traçado feito por um artista indiferente a qualquer desejo de mulher, a qualquer noção de brincadeira a qualquer vislumbre de um abismo. Além e aquém de qualquer entendimento.